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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

“A Febre”, filmado em Manaus e protagonizado por indígenas

O premiado longa está em cartaz no Casarão de Ideias, em Manaus, mas produtora planeja exibir em comunidades indígenas após a pandemia.

Filmado em Manaus com um elenco predominante indígena de diferentes etnias, o longa “A Febre”, da diretora Maya Da-rin, chegou nesta quinta-feira (12) às salas de cinema e plataformas de streaming (Net Now, Vivo Play e Oi Play). A produção conquistou 30 prêmios ao redor do mundo, entre eles o Leopardo de Ouro de Melhor Ator e Prêmio da Crítica Internacional Fipresci no Festival de Locarno, na Suíça.

“A Febre” conta a história de Justino (Regis Myrupu, do povo Desana), um indígena que trabalha como vigilante no Porto de Manaus e vive com a família na periferia. Ele vive uma rotina monótona e repetitiva, que o faz pensar sobre a antiga vida na aldeia, de onde foi embora 20 anos atrás. Em casa, o protagonista tem que lidar ainda com a possibilidade da filha Vanessa (Rosa Peixoto, do povo Tariano) ir embora para estudar medicina em Brasília. Mas as coisas começam a mudar quando ele é acometido por uma febre e, ao mesmo tempo, uma criatura misteriosa começa a segui-lo. O filme é falado em português e em tukano, uma das quatro línguas indígenas oficiais do município de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, de onde o elenco é originário.

O protagonista do filme, Regis Myrupu, do povo Desana (Divulgação)

A produção é o primeiro longa-metragem da diretora Maya Da-rin, que já filmou dois documentários na Amazônia, mais precisamente na fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru, no sudoeste do Amazonas. Foi naquela ocasião que ela conheceu famílias indígenas que migraram da aldeia para a cidade e serviram de inspiração para o longa. “Acabei criando uma relação mais próxima com uma dessas famílias e as conversas que tivemos me trouxeram a vontade de realizar um filme de ficção”, relembra a diretora Maya Da-rin, em entrevista à Amazônia Real.

Em Manaus, o filme entrará em cartaz no Casarão de Ideias (Rua Barroso, no centro de Manaus) e contará como uma sessão de estreia com a presença da equipe no PlayArt Manauara, no sábado (14), para convidados e público-geral.

A equipe trabalha, com a distribuidora Vitrine Filmes, para que o filme também chegue ao público indígena depois da pandemia da Covid-19. “Estamos organizando sessões em aldeias de diferentes regiões do país, através de parcerias com cineastas indígenas; uma roda de conversas online reunindo pensadores e artistas contemporâneos, indígenas e não indígenas; e parcerias com comunicadores e organizações indígenas”, adianta a diretora.

 

Contraste de Manaus inspirou ambiente

“A Febre” mostra a realidade dos indígenas de contexto urbano (Divulgação)

O roteiro de “A Febre” começou a ser escrito em 2013 e foi desenvolvido ao longo de vários anos. Durante esse período, Maya Da-rin e um de seus co-roteiristas, Miguel Seabra Lopes, foram a campo e acompanharam a rotina dos trabalhadores de um porto de cargas e das enfermeiras da Unidade Básica de Saúde de Santa Etelvina (na zona leste de Manaus), além de visitar comunidades indígenas de diferentes etnias.

As filmagens aconteceram, em 2018, em Manaus e arredores da cidade, como a Reserva Florestal Reserva Ducke, a Unidade Básica de Saúde (UBS) Arthur Virgílio e o município de Iranduba (localizado a 20 quilômetros de Manaus).

“Decidi ambientar o filme em Manaus, uma cidade que encarna na sua história e na sua paisagem o contraste entre esses diferentes projetos de sociedade. De um lado, temos as formas de organização social das sociedades ameríndias, que originalmente habitavam aquele território e, de outro, o projeto colonial ocidental e capitalista que deu origem ao Polo Industrial e à urbanização de Manaus, que pouco dialoga com a floresta, com as suas formas de vida e seus saberes”, explica a diretora à reportagem.

 

Vez, voz e oportunidade para os indígenas

Filme mostra os contrastes de Manaus (Divulgação)

Na formação do elenco de “A Febre”, a diretora contou com a colaboração de uma equipe de produtores locais, que visitaram comunidades nos arredores de Manaus e o município de São Gabriel da Cachoeira. Esse trabalho durou quase um ano.

“Estive com mais de 500 pessoas antes de encontrar os atores que interpretam os personagens da família de Justino. Todos são originários do Alto Rio Negro, falantes do idioma tukano e pertencentes aos povos Desana, Tariano e Tukano. O Regis Myrupu me chamou atenção pela sua presença e pela precisão de seus movimentos. Já na Rosa Peixoto, havia algo que eu não conseguia acessar, como um segredo, que era o que eu buscava para a personagem de Vanessa”, conta a diretora.

O filme foi a primeira experiência de Regis Myrupu como ator. A atuação do estreante nascido no distrito de Pari-Cachoeira, em São Gabriel da Cachoeira (a 853 km de Manaus), rendeu o prêmio de Melhor Ator do Festival de Locarno.

“Esse reconhecimento foi uma grande surpresa. Porém, mais do que isso, foi eu como indígena representar todos os povos indígenas do Brasil e do mundo. Pois tive vez, voz e oportunidade de passar a nossa mensagem para o público. Isso foi o meu maior presente”, afirma Myrupu à Amazônia Real. O ator mora na comunidade São João do Tupé, a 25 quilômetros de Manaus.

Para viver Justino, o ator participou de um processo de criação orientado pela preparadora de elenco Amanda Gabriel. “Falar no filme uma língua que aprendi a falar desde quando era pequeno, juntamente com atores indígenas de outras tribos, porém do mesmo clã, foi uma das maiores riquezas de valores que senti, de diversidade e de liberdade. Eu era ciente que nós não estávamos falando nossa língua tukano apenas no filme, e sim falando com o mundo, levando a mensagem para o mundo, e isso me fez sentir muito bem e valorizado”, diz Regis Myrupu.

À pedido da diretora, o ator acabou colaborando ainda no roteiro, ajudando na construção dos diálogos e nos comportamentos dos indígenas.

 

Protagonismo indígena

Rosa Peixoto e Regis Myrupu como Vanessa e Justino (Divulgação)

O conflito cultural, a desigualdade, o preconceito e outros desafios que vivem quando migram para a cidade são o pano de fundo de “A Febre”. “Esse filme tem um olhar um pouco diferente, fala sobre indígenas urbanos. E isso foi importante para mim porque trata um pouco da minha vida. Saí da comunidade, morei em Manaus. Vivi e já ouvi muita coisa, ouvi muitos relatos. Eu mesma já ouvi: ‘você é índia, o que está fazendo aqui? (na cidade)’, entre outras coisas”, conta Rosa Peixoto, intérprete da personagem Vanessa, que saiu de Iauaretê, distrito de São Gabriel da Cachoeira, e veio para a capital do Amazonas com 12 anos.

A atriz também destaca a importância da representatividade em “A Febre”, mostrando os indígenas ocupando locais tanto nas telas quanto fora delas. “No filme, a Vanessa é enfermeira e o Justino trabalha como segurança, estão exercendo profissões diferentes como um cidadão comum. Eu sou atriz e eu estou protagonizando um filme. Assim, como outro indígena pode ser médico, advogado, professor.  Isso é importante para as pessoas entenderem que nós indígenas também podemos ter a profissão que a gente quiser.”

“Esse tipo de rebaixamento que cotidianamente vivo no meio da sociedade, eu com certeza emprestei algo da minha vivência para o personagem, da forma que eu respondi à fala dele, ignorando e seguindo em diante. É isso que faço na vida real para me defender das ameaças”, acrescenta Regis Myrupu, comentando sobre a chegada, no filme, de um novo vigilante, Wanderlei (Lourinelson Wladmir), e das falas vexatórias que ele traz.

A intérprete de Vanessa também acredita que o filme é atual e oportuno. “Fiquei muito feliz de participar de um longa-metragem protagonizado por indígenas. Foi significativo para mim, pelo momento que a gente vive atualmente perante à sociedade e às mídias que fazem questão de inviabilizar a nossa luta”, diz.

A diretora Maya Da-Rin (Felipe Mussel)

O filme de 1 hora e 38 minutos, assistido previamente pela Amazônia Real, traz diálogos simples e diretos, cortados por intervalos de silêncio e imagens da cidade e da floresta, que simbolizam a dualidade do protagonista Justino.

A diretora conta que o filme teve como referência os trabalhos de diferentes pensadores, artistas e cineastas, indígenas e não indígenas, entre eles Ailton Krenak, Davi Kopenawa, João Paulo Barreto, Eduardo Viveiros de Castro e Dominique Buchillet. Outra referência é o livro “Antes o Mundo Não Existia”, escrito de Firmiano, Luis e Feliciano Lana; este último morto neste ano vítima de covid-19. Além de de cineastas como Sueli e Isael Maxacali, Takumã Kuikuro, Vincent Careli e Andrea Tonacci.

“O processo de criação também foi muito influenciado por pessoas que conheci e me contaram sobre as suas histórias de vida e, principalmente, pelos atores que participaram do processo de criação das cenas e de reelaboração do roteiro. Essas referências foram se entrecruzando de forma muito orgânica e acabaram gerando o que vemos no filme. ‘A Febre’ não foi então baseado em uma teoria específica, mas em um cosmos de ideias e imagens que estabelecem diferentes relações entre si e podem também ser interpretadas de variadas formas por cada espectador”, explica Maya.

Na trama, segundo a diretora, Justino está “ao mesmo tempo sendo perseguido e perseguindo uma criatura invisível”. “Então há um jogo de espelhos sobre o que consideramos selvagem e ameaçador, sobre quais forças ameaçam cada um de nós, dependendo da posição social e histórica que ocupamos”, finaliza.


por Luana Ribeiro Piotto    |    Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

 

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