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Sábado, Novembro 2, 2024

A Futebolina Comédia

Carlos de Matos Gomes
Carlos de Matos Gomes
Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

Dante, Bórgias e Gângsteres

A Divina Comédia é uma viagem ao submundo dos homens, na qual Dante inventou três círculos onde alguns dos seus mais esdrúxulos representantes eternizam as suas taras.

Dante dividiu a sua Comédia em três partes: Paraíso, Purgatório e Inferno. A crença num paraíso eterno é contraditória – o aborrecimento associado à eternidade colide com a ideia de paraíso, a ameaça do purgatório é aberrante, é uma condenação à prisão perpétua a pão e água de que um tal Ventura é o propagandista do momento, mas a imagem do Inferno parece bastante real. Foi por aí que Dante começou e é a parte importante da obra, a justificação do sucesso da obra. O nosso espelho.

O Inferno é descrito como tendo nove círculos, correspondentes a ações praticadas pelos homens. Depois do átrio, o Inferno começa no Vale dos Ventos, destinado aos luxuriosos, passa ao Lago de Lama, dos praticantes da gula, daí às Colinas de Rocha, as dos gananciosos e depois o Rio Estige, onde arrefecem os irados, seguem-se o Cemitério de Fogo, dos hereges, o sétimo círculo, o Vale do Flegetonte, o dos violentos, o oitavo círculo, o Malebolge, da fraude e o nono, o lago Cocite, dos traidores. Este é o cenário do Inferno do Mundo do Futebol SAD, da futebolina comédia, de que nos apresentaram as primeiras imagens há poucos dias.

Os agentes que desencadearam a dita “Operação Fora de Jogo” exibiram-se perante os convidados da comunicação social à porta do Inferno do futebol SAD. O facto de o apresentador do espetáculo ser o juiz Alexandre garante, por experiências anteriores, que o espetáculo está garantido. Tal como nas outras operações, o objetivo é o espetáculo e não o desmantelar do circo de corrupção. Este espetáculo, como os espetáculos da “justiça de Alexandre”, ou de CM, na prisão de Sócrates no aeroporto, e nas buscas às casas da família Espírito Santo tem as caraterísticas de uma cortina para evitar a Justiça com maiúscula e dentro das normas de sereno e prudente respeito pela lei. “Muito aparato, pouco comerato”, dizia alguém a propósito destes métodos revisteiros, remetendo para a gastronomia de degustação.

No Inferno da Futebolina Comédia só faltará, porventura, o círculo dos hereges. No futebol não há hereges. Todos são fiéis do mesmo Deus e acreditam nas mesmas verdades e ninguém do meio as renega: sacar e ganhar. Há um sacrário de onde ninguém sai: o das comissões!

A Gula de um almoço de mil euros a árbitros de que foi reproduzida a fatura com camarão tigre e champanhe do genuíno, a Lúxuria no Calor da Noite, com fruta na cama, a Ganância dos offshores (ofchorosos, diríamos, dirigentes, agentes, e outros coniventes), a Ira dos irados chefes de claques e comentadeiros de bola nas TVs, a Violência dos violentos assaltantes e assassinos, e, por fim a Traição. Há sempre traidores neste mundo. Melhor, na comédia do futebol todos são traidores à espera da ocasião.

O futebol SAD, conhecido pelo “mundo do futebol”, é uma representação do Inferno que apenas necessita de um intérprete para atualizar os nomes dos personagens que Dante espalhou pelos vários círculos.

Mas dos pecados do futebol, do mundo do futebol, também se poderia de há muito dizer o que um autor da época disse do mundo dos Bórgia, em Florença: “Não há crime nem pecado que ali não tenha sido cometido!” A família produziu três papas, Alfonso, que governou como Calisto III, Lanzol como Alexandre VI, e Giovanni como Inocêncio X, além de uma papisa, Lucrécia, filha de Alexandre VI. Os Bórgia foram acusados de nepotismo, adultério, simonia, roubo, estupro, corrupção, incesto e assassinato e especialmente homicídio por envenenamento com arsénio.

O mundo da futebolina comédia não anda longe do mundo dos Bórgia. É certo que falta aos estádios, à cidade do futebol, o luxo dos palácios dos Bórgia. Neste aspeto, o da arte no crime, o mundo do futebol está mais perto da alarvidade suburbana dos mafiosos de Chicago entre guerras. As personagens sadfuteboleiras são mais gângsteres gelatinosos escondidos em covis de onde enviam os homens de mão espalhar metralha, do que assassinos de arma fina.

Ora é deste meio – que reúne os pecados dos círculos do Inferno de Dante, os venenos, a corrupção e a promiscuidade dos Bórgia e a rudeza dos gângsteres de Chicago – que emergem dois dos mais traiçoeiros cogumelos venenosos da nossa sociedade. Um e em primeiro lugar, aquele que permite identificar a sociedade portuguesa e de Portugal com este mundo SAD, com receções oficiais tipo “regresso dos heróis” e a adoção dos seus dirigentes e praticantes como figuras identitárias – os novos Lusíadas, apresentados nos varandins do poder como seres merecedores de reconhecimento, com comendas e tudo.

O segundo, os cogumelos que nascidos nas raízes destes troncos podres se apresentam, devidamente sacralizados, como pretendentes a salvadores da pátria; que, do chiqueiro em que o mundo do futebol SAD se transformou, surgem como políticos impolutos a vociferar contra a corrupção e o crime que campeia no mundo dos outros, sempre no mundo dos outros!

Não há regeneração para este mundo do futebol SAD. Resta a esperança na frase de Séneca: “A maldade bebe a maior parte do veneno que produz”. Esperemos que o veneno produza efeito.

Escreveu Dante à porta do Inferno:

No meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura, solitário, sem sol e sem saída”.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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