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O Czar
O falhanço russo na conquista da Ucrânia dominou o ano de 2022. Putin cometeu um clamoroso erro de cálculo ao menosprezar a capacidade da resistência ucraniana e o efeito de contágio que essa resistência exerceu sobre o Ocidente. Igualmente parece ter sobrestimado a cumplicidade chinesa que se desvaneceu à medida que as dificuldades foram aparecendo. A desaprovação foi também quase unânime entre as outras partes perdidas do império soviético. Mesmo a Bielorrússia tem-se mostrado um parceiro pouco entusiasmado da aventura militar de Putin.
Os únicos apoios sólidos que recebeu foram os da teocracia iraniana, com a qual tomou conta da Síria, e os da Coreia do Norte, mas mesmo estes foram dados de forma quase envergonhada, sendo certo que nenhum destes dois aliados pode inverter por si só a situação no terreno. A estratégia de dominação da Europa através da energia tão pouco funcionou até agora e, pelo contrário, levou a uma quebra importante das fontes russas de divisas. A Rússia pôs em funcionamento todo o seu aparelho de propaganda e desinformação – que se revelou muito mais extenso do que se tinha avaliado – mas esse aparelho não conseguiu até agora vencer a guerra da informação.
A Rússia obteve mais sucesso junto da Turquia, país que se tornou o seu principal parceiro económico, mantendo uma assinalável ambivalência com a Rússia. Internamente, Putin esmagou as dissidências e conseguiu efectuar uma mobilização geral e respondeu às derrotas militares com ataques generalizados a alvos civis e com uma estratégia de uso das suas forças como carne para canhão.
A aposta de Putin é assim a de os russos serem mais condescendentes com o massacre dos seus soldados, com o descalabro económico e com o despotismo putinista do que os ocidentais com os riscos energéticos e o preço do apoio à resistência ucraniana. É uma aposta que não se pode considerar perdida à partida, mas que não parece provável que tenha sucesso.
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O Sultão
De acordo com a análise de Cynthia Farhat do estado contemporâneo da ‘Irmandade Muçulmana’, Erdogan, denominado elogiosamente agora pelos seus dirigentes como o ‘Sultão’, é simultaneamente o líder das vertentes externa, secreta e internacional da Irmandade Muçulmana, exercendo um poder real sobre a Irmandade Muçulmana e moral sobre o islamismo em geral, incluindo aqui a teocracia iraniana, os talibã e o Estado Islâmico.
O sultão vai a votos em Junho deste ano, numa situação em que nunca foi tão impopular no seu país, mas nunca também controlou tanto tudo o que nele existe, incluindo militares, polícia, comunicação social ou justiça. O meu prognóstico é que o controlo dos mecanismos de poder se revele mais importante do que a falta de apoio popular. Em qualquer caso, Erdogan tem-se revelado com uma capacidade de adaptação ao insucesso e de adaptação às mudanças de situação sem paralelo no domínio internacional.
O Sultanato turco tem com o império iraniano uma rivalidade de séculos que continua nos nossos dias. Posto isto, o islamismo tem mostrado uma surpreendente capacidade de gestão da rivalidade, cumplicidade e conflito entre as suas infindáveis facções. A alternativa à teocracia iraniana é uma democracia laica, e esse é o pior dos cenários para o Sultão.
Sendo certo o apoio do Sultão, e sendo incerto o comportamento ocidental, sem o apoio do qual a teocracia já teria naufragado, mesmo com a Rússia fora de jogo, a teocracia iraniana enfrenta no entanto uma revolta popular sem precedentes. A possibilidade da sua queda é real.
Os talibã prosseguem o seu islamismo radical de forma surpreendentemente autónoma. Tendo negado ao Irão a partilha do poder, em aparente guerra com o Estado Islâmico, e em ruptura com o país que os inventou, financiou e armou – o Paquistão – os talibã não parecem sequer sensíveis à pressão do seu último patrocinador, o Emirato do Qatar. Mesmo os EUA parecem desapontados com os talibã, e de acordo com a oficiosa ‘Voice of America’ aceitaram já encontrar-se com oposicionistas afegãos no Emiratos Árabe Unidos. A resistência interna afegã tem aumentado e os planos de investimento chineses no país parecem de concretização duvidosa.
O Estado Islâmico conseguiu reorganizar-se na região do Sahel após a derrota sofrida no Iraque e na Síria, tendo também afirmado a sua presença no Congo e em Moçambique. Paralelamente, a principal milícia russa, denominada de Wagner, fortaleceu aí a sua presença, sendo também significativa a presença da Al-Qaeda, organização mais solidamente ligada à rede da ‘Irmandade Muçulmana’. O islamismo tem também conquistado posições de forma diplomática na América do Sul e de forma ideológica no Sudeste Asiático.
A capacidade de adaptação política e de migração diplomática do islamismo tem-se revelado notável, como igualmente se tem revelado notável a sua plasticidade ideológica. No Ocidente em geral o islamismo continua a exercer uma influência muito grande através de interesses económicos ou através de uma confluência ideológica tanto com a tendência ‘woke’ como com a tendência puritana, esta última particularmente forte nos EUA.
Enquanto no Ocidente não houver visão para entender a importância de fazer guerra à ideologia islamista – e nada indica que isso vá acontecer em 2023 – o islamismo vai continuar a subsistir e afirmar-se, sendo capaz de compensar derrotas em alguns palcos com vitórias noutros.
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O mandarinato
O ano que passou foi o de consagração do poder absoluto de uma única pessoa sobre todo o aparelho do partido e do governo, algo que não se observava na China desde os tempos de Mao. Paradoxalmente, o momento da consagração foi também o momento em que se iniciou a queda de Xi, com um poderoso movimento de contestação à ditadura sanitária que o obrigou a um recuo total e a perder a face.
O modelo de expansão económica no exterior e de obsessão capitalista no interior, bem como o aumento da repressão em geral, parecem ter levado a China a um impasse. Esse impasse tornou-se ainda maior perante a mudança da política norte-americana de fim de cooperação tecnológica com o regime.
Posto isto, está longe de ser seguro saber se o Ocidente não voltará à política de cooperação com a China que caracterizou a maior parte do seu passado recente. As autoridades alemãs dizem-no abertamente (na Bélgica, por exemplo, também, mas de forma menos aberta) e quanto às autoridades americanas, estamos longe de ter certezas, registando-se casos de cooperação sino-americana, nomeadamente no arco Paquistão-Afeganistão-Bangladesh.
Com o fim da política de pureza sanitária recomeçou o expansionismo nos Himalaias e aumentou a pressão sobre a Formosa, fazendo aumentar o potencial de conflito no Indo-Pacífico em 2023. A fraqueza presente do regime torna no entanto pouco provável a deflagração de um conflito de grandes proporções.
A derrota interna de Xi levará provavelmente ao aumento da pressão interna dentro das estruturas do poder para o regresso ao sistema de mandarinato tradicionalmente seguido no país, com o poder detido pelas estruturas burocráticas e sem uma margem de manobra absoluta para o imperador. Penso ser a esse exercício que as autoridades chinesas vão dedicar o essencial das suas energias em 2023.