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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

A geringonça

José Sócrates
José Sócrates
Antigo Primeiro Ministro.

Primeiro dia: a geringonça ganhou as eleições em Portugal. Dia seguinte: a geringonça acabou. Eis um invulgar caso de uma política que não resiste ao seu próprio sucesso.

O  governo que foi popularizado como “geringonça” – um governo só do partido socialista, mas apoiado no parlamento pelos outros dois partidos de esquerda – teve três domínios de indiscutível triunfo: a)  o êxito económico, em particular no emprego; b) o discurso crítico da austeridade enquanto política económica europeia; c) a unidade das forças políticas de esquerda como novidade política. Foi aliás este ultimo aspeto estratégico que mais atenção e interesse despertou no meios políticos do Brasil. Agora, que ouvem dizer que acabou, perguntam-me o que é que aconteceu. Eis a minha análise.

Esclareçamos de entrada que, a acreditar na sinceridade das declarações oficiais, ela não acabou definitivamente. Os três partidos que a compunham – o socialista , o bloco de esquerda e o partido comunista – continuam a afirmar a intenção de cooperar e dialogar em torno de propostas concretas que serão analisadas caso a caso. No entanto, o aspeto mais relevante do anterior cenário – um acordo parlamentar que  garantiu a estabilidade política durante os quatro anos de legislatura – terminou.  Se isso significa que a solução política está definitivamente enterrada é ainda matéria de especulação. Mas podemos dizer com segurança que nada será como dantes.

O partido comunista foi o primeiro a manifestar a intenção de não fazer qualquer acordo prévio. O facto é que os ganhos políticos foram distribuídos assimetricamente. Ao contrário dos outros parceiros, os comunistas perderam votos e deputados e querem agora ter as mãos livres. Aceitemos. Todavia, o que determinou o desenlace não foi esse facto, mas a recusa do partido socialista em fazer um acordo programático com o bloco de esquerda, cuja soma de deputados é suficiente para garantir a maioria parlamentar. Esta foi a decisão que provocou a rotura – acabou a geringonça.

A escolha do partido socialista é surpreendente, como surpreendente é, igualmente, o argumento usado para a justificar. Dizem os socialistas que preferem continuar a negociar medida a medida com todos os outros partidos de esquerda, entre os quais o partido comunista, para não criar uma hierarquia entre eles. O argumento, pura e simplesmente, não faz sentido. Essa hierarquia existe de facto e foi criada pelos únicos que a podem criar – os eleitores portugueses. Foi o povo e mais ninguém que deu ao bloco de esquerda a posição de terceira força política, capaz de fazer com os socialistas,  maioria absoluta no parlamento (cerca de 127 deputados num parlamento com 230). Na verdade, ninguém está a dar nada ao bloco de esquerda que este partido não tenha conquistado. Mal vai a política que não reconhece as realidades eleitorais.

Acresce que um dos sucessos mais celebrados pela solução política chamada “geringonça” foi o de quebrar uma cultura política que excluía os partidos à esquerda do partido socialista das soluções governativas, remetendo-os para a sua condição de partidos de protesto. Na Itália da guerra fria chamavam a isto  conventio ad excludendum que servia, na altura, para afastar o partido comunista de qualquer acordo que incluísse a sua presença em cargos governamentais. No entanto, e para fazer valer a verdade, é necessário dizer que essa situação era igualmente alimentada pelos próprios partidos quando recusavam fazer alianças e estabelecer compromissos, assumindo um orgulhoso distanciamento da governação que os preservava de responsabilidades. Seja como for, a experiência parlamentar realizada mostrou que esse preconceito político teve o seu tempo e que nada o justifica agora. Quebrou-se um muro, diziam orgulhosos os socialistas. Sim, quebrou-se um muro, mas ficamos agora a saber que era apenas metade do muro. O resto ficou. A recusa em estabelecer um acordo de legislatura com o bloco de esquerda parece assim evidenciar uma visão meramente utilitária: o bloco de esquerda serviu na altura para apoiar os socialistas em alturas de aflição (quando o partido socialista perde, mas a direita não tem maioria) mas não serve agora para momentos de normalidade (em que o partido socialista  ganha, embora sem maioria absoluta no parlamento). O que deveria ficar registado como um gesto de grandeza e densidade histórica ficará assim reduzido a um expediente instrumental de sobrevivência política.

Na verdade, esta situação é muito parecida à que se viveu em Espanha e que foi muito referida na campanha eleitoral portuguesa. Também ali os socialistas espanhóis recusaram fazer uma coligação de governo com o partido Podemos (da mesma família política do bloco de esquerda) esperando que aquele partido os apoiasse no parlamento, sem terem lugares no governo. Em síntese: podeis apoiar o nosso governo, mas não integrá-lo. Podeis apoiar, mas não caminhar a nosso lado. Como se os catorze por cento dos votos do Podemos não os colocassem legitimamente na situação de reivindicar o poder proporcional à responsabilidade que partilhariam com o apoio parlamentar que lhes é solicitado.

Seja como for, assinalemos que a popularidade da solução geringonça é ainda tão forte nos respetivos eleitorados que nenhum dos partidos quis assumir a responsabilidade pelo seu fim. Começou a fase de apontar culpas e esta fase não é bonita. Uma das mais importantes mudanças politicas que a geringonça permitiu foi trazer esses partidos para o denominado “arco da governação”, introduzindo-os  nas dificuldades das responsabilidades executivas e na dura realidade da política que nem sempre representa uma clara escolha entre o bem e o mal, consistindo, muitas vezes, na escolha do mal menor. Esse é o fracasso que resta. Oxalá me engane, mas o que podemos esperar é o crescimento do ressentimento. E o ressentimento é uma poderosa força política.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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