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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

A guerra de todos contra todos

Mendo Henriques
Mendo Henriques
Professor na Universidade Católica Portuguesa
Mendo Henriques
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa

O navio de guerra português D.Francisco de Almeida com mais dois outros da NATO entrou no Bósforo. A defesa da Turquia no Mediterrâneo Oriental com mais navios, aviões e mísseis Patriot tornou-se prioridade da NATO. Sinal contra o Estado Islâmico? Contra a Rússia? Para sossegar a Turquia? De tudo um pouco? Enquanto não tivermos uma grelha de leitura, todos os eventos do Médio Oriente parecerão confusos.

Houve um tempo em que, como diretor do Departamento de Investigação do Instituto da Defesa Nacional, eu seguia os assuntos no Médio Oriente; desses labores é expressão a obra Security in the Mediterrranean, Playing with fire, Amsterdão, 2006.

Desde esses anos, tudo mudou para pior. Mas apesar das informações em catadupa, o panorama do desastre é simples: o fogo alastrou devido à ação dos fundamentalistas e agora estamos perante uma guerra de todos contra todos.

Entre os movimentos fundamentalistas sobressai o Estado Islâmico, Daesh ad-dawla al-islāmiyya notório pelos crimes contra a humanidade, genocídios, autos de fé, destruição de património e massacres no Líbano, África, Europa e EUA. A destruição do Daesh é uma exigência mas que não nos deve fazer abdicar da lucidez.

Se a guerra na Síria fosse empresa por quotas, a maioria das ações caberia aos fundamentalistas islâmicos do Daesh. Mas do remanescente, um terço seria quota dos EUA; outro terço da Rússia e o terço restante dos demais países intervenientes, árabes e ocidentais.

Com a invasão do Iraque em 19 de março de 2003, os EUA de Bush destruíram um Estado sem direitos humanos mas que, ao desaparecer, criou um vácuo com três polos: os curdos de Mossul, os sunitas de Bagdad e as regiões do noroeste. Com o apoio ocidental aos “rebeldes” veio a guerra civil síria. A Rússia de Putin, ao apoiar Bashar Assad em vez de o obrigar a negociar, neutralizando os extremistas, empurrou-o para a brutalidade.

A destabilização da Síria fragmentou um país multisecular, onde conviviam crenças e povos. Grandes cidades foram destruídas dos 4 a 5 milhões de refugiados, muitos acorreram à Europa em 2015 após a Grécia abrir as portas aos que vinham da Turquia.

O regime de Bagdad conta com apoios militares estrangeiros. No terreno, o Hezbollah libanês e o Pasdaran iraniano sustentam o exército governamental. No ar, as forças aéreas dos EUA, França e Inglaterra, e as forças russas, passaram a bombardear o Daesh.

O EI ou Daesh aproveitou todas as oportunidades para criar um estado islâmico. Ninguém o deteve a tempo. Só contava a guerra civil “oficial” entre o Governo apoiado pela Rússia e os “Rebeldes” apoiados pelo Ocidente. A situação tornou-se caricata se não fosse trágica: os EUA bombardeiam o Daesh que usa armas americanas para atacar o Governo Sírio que se defende com armas russas e chinesas contra rebeldes apoiados pelos EUA.

A opinião ocidental está confundida. Há “russófilos” que apenas o são por serem americanófobos e americanófilos que juram ser russófobos. Muitos admiram o presidente Putin como um “duro”; ou admiram os falcões americanos, entretidos com os seus jogos de soma zero do tempo da Guerra Fria. São atitudes patéticas em política internacional. A guerra na Síria só terá fim quando se eliminarem não os efeitos mas sim as causas.

O EI só será derrotado se terminar a guerra civil da Síria; e esta só terminará quando Bashar Assad negociar a cedência do poder. Há 5 anos atrás era possível negociar. No futuro, após a indispensável manifestação de força, será preciso negociar com mais interlocutores.

Para que a Rússia se aproxime da coligação liderada pelos EUA, há uma guerra de opinião em duas frentes: contra falcões norte-americanos sempre prontos a humilhar Moscovo; contra os oportunistas que acham que a Rússia deve fazer o trabalho do Ocidente .

Depois, o Irão. É paradoxal mas a intervenção da República Islâmica é essencial para derrotar o “Estado islâmico”. Contudo, o Ocidente deve cuidar que a extinção do Daesh não seja uma vitória dos xiitas de Damasco e Teerão apoiadas pelos “cruzados” contra os sunitas do califado. 80% dos muçulmanos são sunitas, e os “jihadistas” apresentariam a derrota do Daesh como humilhação pelos frangues, sejam Americanos ou Russos.

Para a derrota de Daesh concluir com uma vitória Sunita, é preciso um novo regime em Damasco, sem o poder da minoria xiita laica de Assad e uma redefinição do Iraque. E finalmente existe a Arábia Saudita. É um regime obscurantista. Há príncipes sauditas e de outros países do Golfo a financiar o EI. O wahabismo tem contribuído para a regressão intelectual do Islão em todo o mundo. Mas as relações estáveis com a Arábia Saudita são indispensáveis caso se queira apoiar o Egipto do marechal Sissi.

Alcançar esta frente definidora, não seria ainda o fim do terrorismo islâmico, mas seria um grande passo em frente na pacificação da Síria. O restante é a longo prazo; trata-se de uma evolução no próprio mundo muçulmano, um exame de consciência que já começou e que o futuro dirá se tem futuro. Como editor de Rachid Benzine Os novos Pensadores do Islão, Tribuna, 2003, sei do que falo. Mas isso fica para outros escritos.

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