Ao episódio do início da história brasileira, a grande guerra indígena contra a escravização pelo colonizador, foi atribuído pela historiografia um nome que talvez não seja adequado: Confederação dos Tamoio.
Primeiro porque a palavra confederação traz ressonâncias políticas que correspondem à realidade europeia, de união entre entidades políticas da experiência dos países ocidentais, não existentes entre os indígenas brasileiros. Depois porque a palavra tamoio (em tupi tamyîa, ou tamuîa) não é o nome de um povo: significa “avô”, “antepassado”, podendo também indicar o mais velho da terra, o que chegou primeiro.
O escritor Aylton Quintiliano – que foi repórter, na década de 1950, no jornal “Imprensa Popular”, publicado pelo PCB – usou, como título de seu grande estudo sobre aquele episódio inaugural de nossa história, o nome mais correto de “A Guerra dos Tamoios”, que foi publicado em 1965 no contexto dos 400 anos de fundação da cidade do Rio de Janeiro.
É uma história que se refere à luta pela liberdade, contra a escravização.
Em meados do século XVI a vida na colônia passava por uma profunda mudança. Até então o colonizador português não se estabelecera de forma permanente na terra e praticava o escambo com a população originária. Trocavam machados de ferro, facas e outros instrumentos de metal, espelhos, anzóis e objetos semelhantes, por víveres (frutas, legumes) e principalmente por toras de ibirapitanga (pau-brasil), que era abundante na terra, e muito consumida na Europa como insumo na indústria têxtil. Os indígenas colhiam as toras na mata e as transportavam até os navios europeus.
Essa realidade começou a mudar por volta de 1530. O rei de Portugal dividiu o território em capitanias hereditárias, atribuídas a donos de dinheiro capazes de explorar de maneira autônoma o território. Começou então a montagem da economia latifundiária e escravista (inicialmente para a produção de açúcar) na Colônia, com base no trabalho escravo. Nova realidade que levou a revoltas indígenas em toda a Colônia.
Os portugueses eram poucos e, para conseguirem contingentes capazes, de defender a Colônia, haviam, nas décadas anteriores, estabelecido alianças com algumas nações indígenas. Como ocorreu em São Vicente, onde João Ramalho, que se tornou parceiro do governador Brás Cubas, havia se casado com uma filha da tribo dos Tupiniquim, e conseguiu muitos aliados. João Ramalho, com seu sogro Tibiriça, teve grande atuação no planalto de Piratininga (fundou a vila de Santo André da Borda do Campo, em 1553, e apoiou os jesuítas na fundação de São Paulo, em 1554), logo se tornou um grande caçador de escravos entre indígenas adversários. Atividade em que se juntou a Brás Cubas, outro grande caçador de escravos – de tal forma que a vila de Santos, fundada por ele em 1546, logo ganhou o apelido de “porto dos Escravos”, tamanho era o número dos cativos ali negociados.
João Ramalho e Brás Cubas atacaram uma aldeia Tupinambá, aprisionando várias pessoas, inclusive o líder da aldeia, Cairuçú, que morreu em cativeiro nas terras de Brás Cubas.
O escritor Aylton Quintiliano diz que, no funeral de Cairuçú, muitos cativos puderam fugir, inclusive seu filho Aimberê, que se tornou um dos chefes da guerra contra os escravizadores. Ele liderou a revolta e fuga do cativeiro, indo para terras da capitania do Rio de Janeiro, onde se entrincheirou em Uruçumirim (hoje Outeiro da Glória). Conseguiu juntar outras tribos e aliar-se a seus chefes – Pindobuçú, de Iperoig (atual Ubatuba); Koaquira, de Uyba-tyba (Ubatuba); Cunhambebe (pai), de Ariró (Angra dos Reis); e o povo Guayxará, de Taquarassu-tyba. Uniu gente das nações – Goitacá e Aimoré – e também outras no Vale do Paraíba – numa grande extensão do litoral, indo das atuais Iguape (SP) a Cabo Frio (RJ), entre 1554 e 1567.
De um lado, Tupinambá, ou Tamoio; do outro, Tupiniquim. Os primeiros aliados aos franceses de Villegaignon, calvinistas e portanto anticatólicos, que em 1555 tentou estabelecer na baia da Guanabara sua França Antártica – e que mantinha o escambo com os indígenas nas mesmas condições anteriormente praticadas pelos portugueses. Assim, os Tamoio aliaram-se a ele e chegaram mesmo a fornecer, como escravos, prisioneiros que se recusavam a aderir à sua guerra contra os portugueses. Até que, um dia, a brutalidade francesa levou-os a suspender essa ação. Villegagnon mandou despedaçar, na bôca de um canhão, prisioneiros que se recusavam a trabalhar. Desde então, diz Quintiliano, os Tamoio não entregaram mais seus prisioneiros aos franceses.
Do outro lado, os Tupiniquim, aliados aos portugueses, que se tornavam cada vez mais em caçadores de índios para a escravização.
Um episódio muito referido na guerra dos Tamoio é a famosa paz de Iperoig (hoje Ubatuba), de 1563, uma trégua que não durou muito, envolveu os jesuítas e é reveladora dos reais motivos da guerra. O episódio envolveu os padres Manoel da Nóbrega (como negociador) e José de Anchieta (como intérprete). Na trégua negociada os portugueses foram obrigados a libertar todos os indígenas que haviam escravizado.
Num certo momento, em que Nóbrega levou alguns chefes para negociar com os portugueses, Anchieta ficou de refém entre os tamoio, como garantia da vida e liberdade dos emissários. Diz-se que, nessa ocasião, Anchieta teria composto, escrevendo na areia da praia, seu célebre poema em latim, em homenagem à Virgem Maria, chamado “Poema da Virgem”.
A trégua não durou muito. Sentindo-se fortalecidos, os portugueses romperam o acordo e atacaram aldeias indígenas, matando e escravizando os sobreviventes. Os Tamoio se retiraram então para a baía de Guanabara onde, em 1567, chegaram reforços para o capitão mor Estácio de Sá (sobrinho do governador geral Mem de Sá), que havia fundado no local, em 1565, a cidade do Rio de Janeiro. Foi a etapa final da guerra. Os franceses foram expulsos; Aimberê morreu em combate (em Cabo Frio), e os tamoio e seus aliados foram obrigados a se refugiar em outros lugares distantes da baia da Guanabara.
Muitos estudiosos tentam ver, na guerra dos Tamoio, uma manifestação nativista em defesa da terra. São conclusões frágeis – o Brasil ainda não existia, estava nascendo; e os tupinambá, que viviam na etapa do comunismo primitivo, não tinham ainda a noção de propriedade da terra, que era um bem comum, podendo ser usada por todos.
Mas entre eles era muito forte a noção de liberdade, e não aceitavam ser escravizados, e lutaram contra os scravizadores com as armas que tinham e da maneira que podiam. Nesse sentido, a guerra dos tamoio foi contra a escravização, pela liberdade.
- Cunha, Manuela Carneiro da (org.). “História dos índios no Brasil“. São Paulo, Cia das Letras, 2012
- Marchant, Alexander. “Do escambo à escravidão – as relações econômicas de portugueses e índios na colonização do Brasil, 1500-1580“. São Paulo, Cia Editora Nacional. 1980
- Monteiro, John. “Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo“. São Paulo, Cia das Letras, 1994
- Perrone-Moisés, Beatriz. e Sztutman, Renato. “Notícias de uma certa confederação Tamoio“. Mana, vol.16, nº 2, Rio de Janeiro, 2010. Consultado em 05/09/2020.
- Quintiliano, Aylton, “A Guerra dos Tamoios”. Rio de Janeiro, Reper Editora 1965
Texto em português do Brasil
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