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Terça-feira, Julho 16, 2024

A guerra e a liberdade

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A guerra da informação é tão ou mais importante do que a financeira ou a estritamente militar, e há que travá-la, mas é preciso fazê-lo com ambos os olhos abertos, de forma transparente, motivada e equilibrada. 

  1. A nauseante campanha de branqueamento do putinismo

Putinismo’, clássico de Walter Laqueur editado em 2015 e que eu li em 2016 – altura em que li uma boa quantidade de outros livros do que considero ser o melhor autor em matéria de terrorismo – coloca o personagem onde ele tem de ser visto, numa União Soviética que o mundo ainda não dessovietizou, mas não acentua suficientemente o que ele é: um Estaline tão sanguinário mas mais corrupto que o original.

A bárbara invasão do seu país vizinho com o argumento genocida de que ‘a Ucrânia não existe’ e com práticas correspondentemente genocidas, não pode ser demasiadamente condenada. É o rompimento frontal da Carta das Nações Unidas, é o rasgar de todos os princípios em que baseamos a dignidade humana, é a afirmação da mentira como princípio universal e da força como única razão válida.

Discutir nestas circunstâncias os princípios da liberdade de expressão ou o direito de propriedade parece-me algo indecoroso, porque não há mais intolerável violação de um direito humano do que o de tirar a vida, e não há pior assassínio do que o que incide sobre anónimos cidadãos, a começar por crianças.

O imenso espaço público e consideração que gozam entre nós os inimigos da dignidade humana desgostam-me profundamente e não tenho por isso qualquer vontade de lhes dar ainda mais espaço ao branqueamento do que fazem.

A informação sempre foi uma arma de guerra, e o mesmo se pode dizer do dinheiro, e esses são aspectos da guerra que não são os mais chocantes.

Posto isto, mesmo na guerra, é possível estabelecer regras que limitem a desumanidade, e é esse o percurso que foi iniciado o século passado com o comité internacional da cruz vermelha e a Convenção de Genebra de 1864. A restrição à informação e ao direito de propriedade usadas na guerra têm também de ser feitas não só o menos desumana e liberticida possível, mas também têm de contribuir para o esforço de guerra de forma eficaz, e não devem servir para fins diversos daqueles para que foram criados.

Isto é tanto mais verdade quanto, pesem embora os passos muito significativos e alguns fora do comum dados pelas instituições europeias e os Estados europeus desde o início da presente invasão, o esforço de solidariedade com a Ucrânia, tanto no domínio militar como no financeiro, continuam muito aquém do que seria desejável.

  1. Os riscos de procedimentos não regulamentares de excepção

Na Constituição da República Portuguesa, como na generalidade das constituições dos países democráticos, estão previstos regimes excepcionais como o ‘Estado de Sítio’ e o ‘Estado de Emergência’ devidamente balizados, de forma a não poderem ser desviados dos objectivos para os quais foram criados, e que deveriam servir para responder a situações de guerra, como aquela que a Rússia desencadeia neste momento contra um país europeu e que ameaça estender a outros.

Esta guerra, no entanto, não é uma guerra declarada, e existe por isso num limbo indefinido entre guerra e paz. Por outro lado, a guerra foi recentemente invocada totalmente a despropósito, com a pandemia. O Estado de emergência foi decretado entre nós pela primeira vez em democracia, sem que fosse seriamente cumprido o dever constitucional de fundamentação, mas apenas na base da histeria colectiva.

A falta de clareza na utilização do conceito de guerra deu-se também com a chamada ‘guerra ao terrorismo’ que foi declarada na sequência do 11 de setembro de forma imprecisa, de tal forma que resultou quase totalmente no inverso daquilo a que se tinha proposto. É o tema principal do livro ‘terrorism revisited’ de que fui o principal editor.

A chamada ‘guerra ao terrorismo’ não só deixou impunes a generalidade dos responsáveis directos pelo massacre do 11 de setembro como veio mesmo a ser usado por estes para obter os seus principais objectivos estratégicos. O regime iraniano, seriamente implicado no apoio logístico ao ataque do 11 de setembro, viria a instigar com sucesso a invasão do Iraque e a colocação dos seus opositores políticos nas listas ocidentais das organizações terroristas, acto que levou quase uma década a ser anulado pela justiça ocidental.

A utilização de uma instituição juridicamente híbrida de ‘Estado de emergência’ sem uma fundamentação adequada e pervertendo os mecanismos de um Estado de Direito, para além de limitar direitos, liberdades e garantias, serviu para que o agressor manipulasse esse ‘Estado de emergência’ para atingir os seus objectivos; ou seja, serviu exactamente para o inverso dos objectivos para que foi criado.

A situação presente acarreta riscos que são da mesma natureza, porque não existe guerra formalmente declarada, nem um regime de excepção constitucional e legalmente consagrado, nem jurisdição de tribunais de excepção (tribunais militares, por exemplo) que permitam a consideração racional, ponderada e eficaz das medidas excepcionais adoptadas.

A classificação de todos os cidadãos russos ricos como ‘oligarcas’ e a condenação desta categoria em processo sumário à pena de expropriação, executada em conformidade com o arbítrio de quem a decide, é um caso que cai nesta categoria, sendo que o outro, que me parece importante tomar aqui em consideração, é o do encerramento de dois sistemas de informação russos, ‘Russia Today’ e ‘Sputnik’.

  1. Proibição de organismos de comunicação social por desinformação

‘Russia Today’ e ‘Sputnik’ são dois dos mais conhecidos rostos da máquina russa de propaganda, que recorre assaz frequentemente ao que podemos designar de técnicas de desinformação, termo que, contudo, necessita de um quadro jurídico claro quando é usado legalmente.

Constatado um Estado de confronto, guerra fria, ou o que quer que se entenda para tratar de situações como a presente, que não sendo de confronto militar incondicional, são de confronto, nada me choca que esses dois sistemas de informação, como de resto muitos outros, sejam sancionados, prescindindo da aplicação da totalidade, mas não de toda a arquitectura de defesa disponível em tempo de paz.

Acontece que essa decisão foi tomada pelo Conselho no quadro de um regulamento que data de 2014, paralelo a uma decisão tomada no quadro da Política Europeia de Segurança Comum, por ocasião da primeira invasão da Ucrânia e que tem um âmbito muito diverso, em matéria que não está submetida a controlo parlamentar e cuja fundamentação é omissa.

O Tribunal Europeu de Justiça – única instituição de supervisão deste quadro jurídico – rejeitou um recurso apresentado pelo ‘Russia Today’ – França, que pretendia a suspensão da referida decisão dado que ela teria consequências irreparáveis. Tomará, a seu tempo, decisão sobre a questão de fundo.

O problema é que podemos ter aqui uma jurisprudência de consequências insondáveis, segundo a qual a suspensão de um meio de comunicação social não tem consequências irreparáveis, e a consagração de formas de declaração, do que é para todos os efeitos uma guerra, que não estão sujeitos a controlo parlamentar e que são omissos em matéria de fundamentação substantiva, ou seja, a tipificação dos actos concretos de desinformação genericamente invocados, bem como da sua figura jurídica.

Contrariamente ao que vejo ser publicado um pouco por todo o lado, não considero que se possa fazer a equivalência entre a invasão americana do Iraque e a invasão russa da Ucrânia, porque não podemos fazer a equivalência entre um ditador sanguinário que, entre outras coisas, promoveu o genocídio da minoria curda, e o líder democraticamente eleito da Ucrânia.

Contudo, como acabei por entender pela observação no terreno da realidade e da leitura aprofundada das fontes, a verdade é que a invasão do Iraque foi feita na base de mentiras que foram montadas em colaboração com o Jihadismo iraniano, e serviu para esconder a invasão iraniana do Iraque, de consequências desastrosas para a região e para o mundo.

Tudo isso foi apenas possível porque se partiu de uma base legal deficiente e porque não se deu atenção equilibrada às principais fontes de informação. O relatório nacional americano do 11 de Setembro, publicado com base nos vários relatórios oficiais, estabelece de forma inequívoca que o Iraque nada teve a ver com o 11 de Setembro, e implicitamente condena a invasão.

Seria desastroso que voltássemos hoje a repetir o erro de há duas décadas atrás. Não, não se trata de deixar de punir a ignóbil agressão de Putin, como não se tratava tão pouco há duas décadas de absolver Saddam Hussein dos crimes que ele cometeu; trata-se de entender que a ausência de mecanismos transparentes, abertos e eficazes de controlo das acções de guerra pode levar a que inimigos tão ou mais perigosos se escondam atrás dessas acções para combaterem os nossos valores e princípios.

Os ucranianos de hoje podem ser os curdos de ontem. Ambos os povos têm de ser empenhadamente defendidos. Mas temos sempre de ter em atenção que atrás do perigo iminente se pode esconder outro tão ou mais letal do que esse, e para ter a certeza de que sabemos por onde vamos e que não seremos manipulados, só o respeito por regras claras de transparência nos serve.

A guerra da informação é tão ou mais importante do que a financeira ou a estritamente militar, e há que travá-la, mas é preciso fazê-lo com ambos os olhos abertos, de forma transparente, motivada e equilibrada.

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