Do outro lado do Atlântico ainda não se desistiu de tentar salvar o que resta da grandeza da América; isso mesmo foi deixado bem claro pelo actual presidente quando lançou, ainda na sua campanha eleitoral, o slogan «America First».
Tal como a História nos tem ensinado a última fase de qualquer império é uma desesperada tentativa de recentramento, que no caso americano tem sido simplistamente descrita pela comunicação social como uma acção de proteccionismo económico.
Foi amplamente referenciado pela imprensa quando, em Maio deste ano, a actual administração americana anunciou a imposição unilateral de tarifas às importações de aço e alumínio, mas passaram quase em silêncio as primeiras ameaças lançadas contra a China, talvez por na altura (meados do mês de Março) se dizer que UE ficaria isenta… ou porque ninguém levou Trump muito a sério, salvo o governo chinês que além de prontamente anunciar as naturais medidas retaliatórias ainda fez saber que estaria disposto a ir mais longe, pelo que um mês depois já se falava na disponibilidade de alguns países africanos, incluindo a potência regional que é a África do Sul, virem a usar o yuan como moeda de reserva.
E esta nem foi sequer a primeira iniciativa no sentido de um progressivo afastamento do todo-poderoso dólar norte-americano, pois já no início do ano tinham surgido notícias sobre uma possível alteração na política chinesa de compra de dívida pública norte-americana; logo daquele que é o seu maior credor internacional.
Se em Outubro de 2016 assistimos à inevitabilidade da inclusão do yuan no cabaz que origina a cotação da moeda escritural do FMI (os DES), e se em Setembro de 2017 a Venezuela manifestara a intenção de substituir o dólar pelo yuan na cotação do petróleo, natural é que a própria China já tenha anunciado abertamente a sua intenção de enfrentar o unilateralismo dos EUA com estratégias em prol de um multilateralismo adequado a quem entende que este é um combate entre moedas – dólar versus yuan – e sinal de que dispõe de uma moeda suficientemente forte para o confronto.
Vários são os sinais que confirmam a análise chinesa e a ideia da fragilidade da posição assumida por Donald Trump. Primeiro, a economia norte-americana depende mais das importações chinesas que o inverso – não esqueçamos que a maioria das grandes empresas americanas há muito que deslocalizaram a produção para os países asiáticos que lhes proporcionam maiores lucros por via da sua mão-de-obra barata – e que os EUA nem sequer são o seu principal mercado. Segundo, a China não depende do sistema monetário ocidental, onde impera o dólar, e detém cerca de 2 biliões de dólares (cerca de 2/3 dos 3,1 biliões de detém em reservas internacionais) em dívida norte-americana, pelo que pode responder à guerra de tarifas imposta por Trump mediante a venda de parte dessa dívida num ataque demolidor ao dólar; talvez não faça isso porque os EUA poderiam ser tentados a emitir ainda mais dólares. Terceiro, pode simplesmente desvalorizar a sua moeda e responder com o aumento da competitividade das suas exportações, que é precisamente o que Trump não quer.
Entretanto, a destrambelhada estratégia norte-americana de disparar em todas as direcções já colocou o resto do Mundo na mira das ameaças de maiores tarifas, nomeadamente a UE e os vizinhos mais próximos (Canadá e México) e com a primeira a reagir na mesma linha de bravata, enquanto a China junta a uma resposta mais moderada um, sempre simpático e conciliador, apelo à concertação internacional, assumindo cada vez mais o papel de potência agregadora no lugar dos EUA.
Até a Rússia, visada através duma mais directa política de sanções imposta na sequência da reocupação da Crimeia, já respondeu aos EUA com uma grande venda de títulos do Tesouro americano, despejando cerca de 47 mil milhões de dólares em papéis; estatísticas recentemente divulgadas pelo Departamento do Tesouro dos EUA mostram que, em Abril, a Rússia tinha apenas 48,7 mil milhões de dólares em activos americanos, tendo vendido quase 50% dos títulos do Tesouro que detinha em Março.
A China, que detém a maior parte dos títulos do Tesouro dos EUA, também vendeu cerca de 7 mil milhões dos seus activos americanos, entre Março e Abril, e o Japão, que está em segundo lugar na lista dos principais detentores estrangeiros de títulos do Tesouro, vendeu, no mesmo período, mais de 12 mil milhões de dólares.
A par com a venda de títulos, russos e chineses estarão a aumentar as suas reservas em ouro numa clara estratégia de redução da sua dependência de outra moeda mas também como mecanismo de protecção contra o dólar e a sua manipulação; esta estratégia de diversificação – a julgar pelos resultados alcançados pelo Irão quando para enfrentar as duras restrições financeiras que lhe foram impostas a pretexto do seu programa de desenvolvimento nuclear, conseguiu continuar a vender petróleo contra pagamento em ouro, euros e yens – reforça a ideia da indispensabilidade da revisão do papel dominante do dólar e relança a questão da liberalização dos meios de pagamento internacionais.
Esta substituição de dívida americana por ouro reforça a confiança na moeda chinesa que além de apoiada numa economia que continua a apresentar invejáveis indicadores de crescimento, se sabe agora respaldada por maiores reservas em ouro, enquanto o dólar americano, desde a inconvertibilidade declarada em 1971 pela administração Nixon, não tem suporte algum; é pura e simplesmente uma moeda fiduciária num período em que os EUA apresentam uma dívida federal superior a 110% do PIB.
Assim, a guerra comercial de Trump não passará afinal duma tentativa para minar a confiança nas moedas chinesa (alvo prioritário, ideia reforçada pelo recente anúncio de novas taxas alfandegárias sobre produtos chineses) e europeia de modo a desviar qualquer intenção do seu uso como moedas de reserva e procurar salvaguardar o cada vez mais contestado papel hegemónico do dólar.
Sobre esta situação ver o artigo Yuan versus Dólar, publicado no dia 10 de Maio de 2018.
Willem Middelkoop, no seu livro «O Grande Reajustamento – As guerras do ouro e o xeque-mate» diz claramente que «Não constitui surpresa que os países que optaram por vender o seu petróleo noutras moedas que não o dólar enfrentaram séria oposição dos Estados Unidos. Em 2000, o Iraque converteu em euros todas as suas transacções de petróleo sob o programa Petróleo por Alimentos. Quando os Estados Unidos invadiram o Iraque três anos depois, as vendas de de petróleo deste país voltaram a converter-se de euros em dólares.
O Irão criou a sus própria bolsa de petróleo em 2008. Começou a vender petróleo em ouro, euros dólares e ienes. A Venezuela apoiou a decisão do Irão de comercializar petróleo em euros. A Líbia representou uma ameaça ao petrodólar em 2010. Muammar al-Gaddafi queria criar uma divisa pan-africana denominada dinar de ouro, que pudesse ser usada nas suas transacções de petróleo. Depois da revolução de 2012, a Líbia continuou a comercializar petróleo em dólares. A Síria mudou para euros em 2006, e os Estados Unidos têm procurado mudar o regime desde então», ligando directamente as opções monetárias de vários estados produtores de petróleo com as crises políticas, económicas, sociais e militares que sofreram.