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Sábado, Novembro 2, 2024

A história conservadora: crônica de particularidades

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

Na década de 1960, polemizando com Michel Foucault, Sartre já havia percebido com argúcia que o alvo de “As palavras e as coisas” era o marxismo. “Para lá da história, bem entendido, é o marxismo que é visado”, frisou, enfatizando: era a “última barragem que a burguesia pode ainda erguer contra Marx”.

Fernand Braudel chamou de mudança “profunda” aquela que ocorre a longo prazo e, segundo ele, de forma autônoma e à margem da praxis humana, de sua experiência concreta. Esta interpretação, “autonomista”, da mudança de longa duração contribuiu para o pensamento conservador ao preconizar como inútil, e mesmo perigosa, a ação das forças sociais que lutam por mudanças e pelo progresso social.

Ele tem a companhia de autores que, a pretexto de “modernidade” e de uma assim chamada “contemporaneidade”, pregam a superação do marxismo, que encaram como um pensamento próprio para as contradições do século 19, tendo sido superado, eles supõem, no século 20.

Entre estes pensadores, que compartilham ideias paralisantes sobre a história, está Claude Lévi-Strauss que, nas décadas de 1950 e 1960, se envolveu em polêmicas intensas com autores marxistas, como Maxime Rodinson, do Partido Comunista Francês e outros influenciados pelo marxismo, como Jean-Paul Sartre.

A crítica de Lévi-Strauss, diz David Pace, foi dirigida contra os esforços para interpretar a história vista como um processo. Eram alvos, disse Lévi-Strauss em entrevista à revista Encounter, em 1979, aqueles que substituíam a “realidade variável, indefinível e imprevisível da evolução histórica por um sistema e uma ideologia”.

Esta crítica é endereçada aos que pensam ser possível, e necessário, compreender a história e rejeitam a ideia de que o relato histórico seja apenas a crônica de experiências particulares ou singulares.

Em outra entrevista, a Le Figaro, em 1967, Lévi-Strauss havia dito que a concepção do homem como ator da história “é fato etnológico muito intimamente ligado a certo tipo de sociedade: a nossa”. Isto é, o homem como ator e autor da história não passaria de uma interpretação cultural e ideológica de nosso tempo.

O estruturalismo foi uma espécie de ponte, de porta de saída, que levou ao antimarxismo difundido desde a década de 1970 – porta de saída que ajudou a conformar o pós-modernismo.

O traço característico deste tipo de argumentação é a tentativa de fazer da história algo alheio, estranho, à atividade humana e sobre a qual os homens não podem intervir nem modificar.

Na década de 1960, polemizando com Michel Foucault, Sartre já havia percebido com argúcia que o alvo de “As palavras e as coisas” era o marxismo. “Para lá da história, bem entendido, é o marxismo que é visado”, frisou, enfatizando: era a “última barragem que a burguesia pode ainda erguer contra Marx”. Sartre referiu-se a tentativas semelhantes, anteriores, que não tiveram êxito. “Fazia-se a história das ideias, como Toynbee, ou então se representava a sucessão das civilizações à imagem de um processo orgânico, como Spengler, ou ainda se denunciava o não sentido, a absurdidade de uma história ‘cheia de ruído e de furor’, como Camus”. Elas falharam, disse Sartre, porque não foram aceitas pelos historiadores pois já naquela época, mesmo não sendo comunista, um historiador sabia “que não se pode escrever história, história séria, sem pôr em primeiro plano os elementos materiais da vida dos homens, as relações de produção, a praxis” (Sartre: s/d).

À luz destas exigências, as teorias burguesas da história eram, disse Sartre, “imagens mentirosas, truncadas”. Assim, como “não se pode ‘ultrapassar’ o marxismo”, tenta-se suprimi-lo difundindo a tese de que “a história é inapreensível enquanto tal, que toda a teoria da história é por definição, ‘doxológica’, para empregar a palavra usada por Foucault. Renunciando a justificar as passagens, opor-se-á à história, domínio da incerteza, a análise das estruturas” encarada como a “única forma que permite a verdadeira investigação científica”, concluiu Sartre (s/d).

Sartre foi ao ponto. O próprio Michel Foucault, referindo-se ao marxismo numa entrevista de 1967, condenou o que chamou de “hábitos mentais que estão começando a desaparecer, e cujos traços só são encontrados como limites em certas mentes petrificadas: hábito de acreditar que a história deve ser uma longa narrativa linear, às vezes ligada por crises; hábito de acreditar que a descoberta da causalidade é o nec plus ultra da análise histórica; hábito de acreditar que existe uma hierarquia das determinações indo da causalidade material mais estrita à aurora mais ou menos vacilante da liberdade humana” (Foucault: 2008).

Foucault pretendeu distinguir entre um marxismo “engessado” e outro, que seria aceitável. Não indicou claramente qual seria este, mas o retrato esboçado pelas rejeições alinhadas no texto não deixa dúvidas em relação ao outro, que condena: é o retrato do marxismo oficial, dos soviéticos que, tudo indica, era o único levado em conta por Foucault, jogando fora, com ele, o marxismo originário de Marx, Engels e Lênin, instrumento da revolução que parte de uma visão processual e científica da história. Ao rejeitar o marxismo, ele rejeita uma ideologia revolucionária que em sua opinião estaria sendo ultrapassada (“hábitos mentais que estão começando a desaparecer”), e recusou a causalidade, em uma história que possa ser estudada, analisada e compreendida objetivamente.

É um anti-marxismo que ainda não rejeita completamente o pensamento de Marx mas, como Vergílio Ferreira observou no prefácio a “As palavras e as coisas”, aloja-o “no lugar discreto de um elemento da estrutura do seu tempo”, encarando-o como um pensamento válido apenas para o século 19, e que estaria ultrapassado em nosso tempo.

Anti-marxismo que, para “atualizar” o pensamento francês na década de 1970, se amparou em outro pensador, contemporâneo de Marx, o aristocrático, reacionário e arquiconservador Friedrich Nietzsche.

Foucault relatou como a crítica ao marxismo “dogmático” levou muitos que tinham suas referências nessa tradição a fazer aquele trânsito. Nietzsche, disse Foucault em uma entrevista em 1983,“aparece em 1972 nos discursos de pessoas que eram marxistas por volta dos anos 60 e que saíram do marxismo” através dele (Foucault: 2008). A influência de Nietzsche, que passou a ser visto erroneamente um – improvável – autor libertário, foi parte da porta de saída que conduziu do marxismo à concepção pós moderna da história.

Alguns anos antes outros já haviam percorrido trajetória semelhante, entre a fenomenologia e Nietzsche. Mas esta é outra história, embora igualmente esclarecedora a respeito dos meandros e funcionamento da ideologia burguesa.

  • Anderson, Perry. “As origens da pós-modernidade”. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989.
  • Anderson, Perry. “Considerações sobre o marxismo ocidental.” Porto, Editorial Afrontamento, 1976
  • Braudel, Fernand. “Escritos sobre a história”. São Paulo, Perspectiva, 1992.
  • Braudel, Fernand. “Reflexões sobre a história”. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
  • Foucault, Michel. “As palavras e as coisas.” São Paulo, Martins, s/d.
  • Foucault, Michel. “Arqueologia das Ciências” e História dos Sistemas de Representação.” Organização e seleção de textos:
  • Manuel Barros da Motta. São Paulo, Forense Universitária, 2008.

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