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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

A história do sucesso do pernil de porco

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Portugal despertou finalmente para a obscura teia de negócios luso-venezuelanos, com a larga cobertura dada na imprensa internacional, venezuelana e portuguesa a um negócio de exportação de ‘pernil de porco’ de um montante de quase 70 milhões de euros destinado à consoada dos venezuelanos e que não terá chegado ao seu destino, provocando manifestações de protesto da população, no que chegou mesmo a ser denominado de ‘revolução do pernil de porco’.Maduro acusou Portugal de sabotagem, acusação negada pelas autoridades portuguesas que afirmam tratar-se de um negócio da esfera privada. Pelo meio, ficou a saber-se (Diário de Notícias ‘Venezuela não pagou pernil de porco a Portugal’) que dos 63,5 milhões de euros vendidos em 2016, a maior parte, 40 milhões de euros, estão por pagar.

O negócio terá começado em 2010 e o ‘Observador’ dedica-lhe um extenso artigo, ‘Iguarivarius. Que empresa é esta que vende pernil à Venezuela?’, informando que a empresa tem como presidente da sua administração o antigo Ministro do Governo de José Sócrates, Mário Lino, e entre os seus administradores, o antigo chefe de gabinete do Ministério da Defesa Paulo Portas, aquando do negócio das contrapartidas dos submarinos e como porta-voz Miguel Guedes, outro membro da equipa ministerial de Paulo Portas.

Sobre o fundador e proprietário da empresa, Alexandre Cavalleri, o citado artigo do ‘Observador’ não nos diz muito, limitando-se a informar-nos que o mesmo lançou em Novembro no Casino do Estoril o seu livro com o sugestivo título ‘A História do Sucesso’, lançamento que foi complementado com a entrega de 30.000 euros a uma associação de solidariedade social. O ‘Observador’ não diz, mas é útil ter em conta que a ‘Gala Solidária’ onde o livro foi lançado contou com a presença de Pinto Balsemão.

Três dias depois do início da crise do pernil de porco, as notícias sólidas sobre o assunto continuam a escassear. Depois de acusar as autoridades portuguesas, as autoridades venezuelanas disseram também que o pernil terá sido retido na fronteira colombiana, e ainda que se trata de uma conspiração americana e dos seus aliados que congelaram as contas bancárias utilizadas para o pagamento do pernil. O antigo assessor de Paulo Portas, agora porta-voz da Iguarivarius, não veio ainda dar os esclarecimentos prometidos.

Pernil de porco – Observações

A primeira observação que me parece útil fazer é que, enquanto há empresas portuguesas (como a Raporal) que se queixam de não ser pagas, há outras, como a Iguarivarius, para as quais a ausência de pagamentos não é obstáculo para uma ‘história do sucesso’ festejada com expressivas doações filantrópicas nos areópagos e na companhia das costumeiras figuras da oligarquia nacional.

A segunda observação é que o argumento de que se trata de assuntos da esfera puramente privada não cola, e isto não só por em numerosos casos os personagens dos negócios privados serem exactamente os mesmos que os dos negócios públicos, como pelas somas colossais de verbas bancárias envolvidas que, ultimamente, são pagas por todos nós nos apoios à banca.

A terceira observação que me parece útil fazer é que a onda de negócios luso-venezuelana teve o seu início com as contrapartidas ao negócio dos submarinos, tema que tem sido cuidadosamente escondido por toda a imprensa portuguesa.

O consórcio alemão que contratou com Portugal a venda de submarinos incluía três empresas, (1) a Howaldtswerke-Deutsche Werft (HDW) que viria meses depois da assinatura do contrato a ser incorporada pela (2) Thyssen Krupp no quadro da ThyssenKrupp Marine Systems e (3) a Ferrostaal.

A mais importante, a ThyssenKrupp, até 2003, era detida em 25% pelas autoridades iranianas. Depois dessa data, por pressão americana, essa presença viria a ser reduzida a menos de 5%.

A Ferrostaal – a empresa responsável pelas contrapartidas – tinha vastas ligações quer ao Irão quer à Venezuela, e foi com estes países que organizou o essencial das contrapartidas a fornecer a Portugal pela compra dos submarinos.

Com esse objectivo, comprou a “Kocher de Portugal” através da qual promoveu uma central eléctrica no Irão em Fajr e um contrato para a construção de duas centrais na Venezuela (esta última no valor de 730 milhões de euros). Para além disso, promoveu negócios de fornecimento de navios à Venezuela pelos Estaleiros de Viana do Castelo. Empresas portuguesas e trabalhadores portugueses são o essencial destes projectos.

Negócios “submersos”

O negócio dos submarinos é, na base, igual a inúmeros outros negócios de submarinos e fragatas promovidos pela Ferrostaal que se desenvolveram no mundo inteiro, com corrupção em larga escala a decisores políticos administrativos, militares e financeiros, e isso mesmo se pode constatar na principal auditoria efectuada sobre o assunto e revelada de forma parcial na internet, Debevoise & Plimpton LLP. 2011. Ferrostaal Final Report, Compliance Investigation cuja divulgação parcial acaba, exactamente, na página onde se iria abrir o capítulo da Venezuela e antes de abrir o iraniano.

A censura que quem colocou este relatório na esfera pública aos temas estratégicos da Venezuela e do Irão é rigorosamente idêntica à que foi feita pela comunicação social portuguesa que, entre centenas de notícias e artigos que registei sobre o assunto nunca menciona essas expressões tabu em Portugal: ‘Irão’ e ‘Venezuela’.

O meio principal como se alimentou a enorme teia de corrupção em volta dos submarinos, entre nós como no resto do mundo, é o do carácter secreto dos contratos, e nomeadamente do contrato das contrapartidas.

A história, no entanto, não pode ser mantida totalmente secreta, porque o escândalo rebentou na Alemanha em torno dos financiamentos políticos da Ferrostaal à campanha presidencial de Hugo Chavez, dos subornos feitos a vários responsáveis políticos estrangeiros, nomeadamente portugueses, e finalmente pelo facto de o esquema ter também servido para torpedear as sanções ocidentais ao programa nuclear iraniano.

A partir daqui, tratou-se de a converter em mera guerrilha partidária, utilizando selectivamente a informação existente para atacar uma ou outra facção política portuguesa, apesar de ser relativamente claro que o assunto envolve transversalmente a quase totalidade do sistema político-partidário português.

Em qualquer caso, existem referências públicas ao envolvimento venezuelano nas contrapartidas pela compra dos submarinos, por exemplo no relatório de contas da Ferrostaal de 2008 (p.83) onde se explica como, em 2006, na sequência do contrato de contrapartidas dos submarinos portugueses, a Ferrostaal adquiriu a ‘Koch de Portugal’ (KDP) que em 2008 estabeleceu um contrato para a produção de duas centrais eléctricas na Venezuela.

Essa informação é complementada com outra mais descritiva, mencionando o valor desses contratos (730 milhões de euros) e o contrato com o Irão, sem dar valores numa brochura sobre a história da empresa.

O relatório anual das contrapartidas de 2014 estima em 220.6 milhões de euros os valor das contrapartidas deste contrato para Portugal e denomina-o como sendo a ‘Viabilização da filial portuguesa de uma empresa alemã em falência’ não dizendo rigorosamente nada sobre o facto de se tratar de contratos executados no Irão e na Venezuela

Já o relatório da Comissão Permanente de Contrapartidas de 2011, que valida 379 milhões de euros de contrapartidas como sendo feitas à ENVC (Estaleiros Navais de Viana do Castelo) não menciona em lado nenhum a Venezuela como o país em torno do qual funcionam essas contrapartidas.

Para além destas contrapartidas, que se referem a operações económicas reais, existem muitas outras mais ou menos fictícias onde se têm centrado a generalidade das atenções da opinião pública, mas que não têm a importância que estas têm (exactamente, porque são fictícias), pois foi a partir daqui que se construiu a imensa teia de negócios de que o pernil de porco é apenas um epifenómeno.

Qualquer análise cronológica séria não pode deixar de constatar que os grandes contratos luso-venezuelanos se começam a desenvolver como contrapartidas ao negócio dos submarinos.

A questão é saber onde chegaram esses negócios e quais as suas consequências para o contribuinte português, matéria que começámos a abordar no nosso artigo do Tornado publicado no dia 25 de Dezembro sobre a operação policial portuguesa em Espanha de Junho passado (mais uma totalmente silenciada pela imprensa portuguesa) que tentou detectar o rasto de cerca de 5 mil milhões de euros da empresa venezuelana de petróleos desaparecidos de Portugal.

Noutro plano, trata-se naturalmente de averiguar as consequências políticas destes negócios que são privados nos proveitos mas públicos nos custos. Porque, para além das comissões cobradas por todos os envolvidos, houve naturalmente um pagamento político a ser feito por estas ‘oportunidades’ abertas à ‘economia portuguesa’.

Trata-se, enfim, de contar a ‘história do sucesso’ dos negócios público-privados da oligarquia portuguesa com o eixo irano-venezuelano.

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