Finalmente, a opinião pública portuguesa parece interessar-se pelas decisões tomadas pelas instituições europeias; não necessariamente pela opinião do Parlamento Europeu sobre a democracia na Hungria mas por algo que nos toca diariamente: a hora legal a vigorar entre nós.
A hora legal é um conceito relativamente novo que nasceu com a nossa era industrial e foi internacionalizado na Conferência Internacional do Meridiano de 1884. Até aí, a hora era sobretudo local – rigorosamente local na navegação, pois era pela hora solar que se podia determinar a longitude – e tornava complexa a organização do tempo a uma escala nacional. Hoje em dia, a hora solar – que se atrasa – foi substituída pela mais rigorosa hora atómica, sem que daí venham contudo grandes consequências para o comum dos mortais
No Reino Unido, o observatório de Greenwich, foi escolhido como o local a partir do qual se deveriam estabelecer fusos horários que permitiram, a partir de 1847, primeiro estabelecer horários comuns nacionais de caminho-de-ferro e progressivamente regular todo o dia-a-dia.
Cada fuso horário corresponde a uma hora de trajectória de rotação da terra e, quando foi criado, tinha a vantagem de cobrir a ilha da Grã Bretanha toda num horário comum. A aplicação da convenção internacional é feita com alguma ‘longitude’ de decisão, havendo países que por conveniências várias (como por exemplo, facilidade de coordenação com vizinhos) se situam à margem do fuso onde ‘naturalmente’ deveriam cair, outros que escolhem fusos desfasados de meia hora ou de um quarto de hora em relação à origem (neste último caso, só conheço o Nepal) e outros onde o critério continua a ser largamente local; até há pouco tempo, no Estado canadiano do Saskatchewan, vigoravam diferentes fusos horários (decididos localmente). No outro extremo do espectro ‘horário’ temos a República Popular da China que decretou a hora de Pequim para o seu território que se estende por cinco fusos horários.
Portugal é um caso típico de uma distorção da hora legal em relação à que seria a situação natural. O território português divide-se por três fusos horários, uma pequena parte oriental que se situa no fuso de Greenwich – a que corresponde hoje o “Tempo Coordenado Universal” (UTC) – a maior parte do país que se situa no fuso -1, e o arquipélago dos Açores que se situa mais a Ocidente, no fuso -2.
De acordo com esta situação, se tomarmos o litoral ocidental do continente como padrão, a hora legal no Continente deveria ser uma hora menos do que a hora UTC, mas com efeito é uma hora mais do que a hora UTC, só se aproximando do UTC durante o Inverno, ficando então apenas a uma hora de distância do que seria normal.
Isto é assim porque Portugal, como a generalidade da Europa Ocidental, se colocou artificialmente a Oriente do que seria a sua opção mais conforme ao ritmo solar natural, aproximando-nos do meridiano de Berlim.
A Espanha, a França, a Bélgica, os Países Baixos e o Luxemburgo, situam-se todos legalmente no fuso UTC+1 em vez de se situarem no fuso UTC como deveria acontecer de acordo com a aplicação mais natural do sistema de fusos. Também a Irlanda se coloca no fuso UTC, quando a sua opção natural seria o fuso UTC-1, tal como Portugal continental.
Esta distorção é agravada no Verão, quando há uma mudança da hora suplementar que afasta ainda mais estes países do que seria a sua opção mais próxima da do ritmo solar.
Como alguns de nós poderão estar lembrados, o Governo de Cavaco Silva, em 1992, na sua obsessão “harmonizadora”, resolveu colocar Portugal continental no meridiano de Berlim, colocando-nos assim a três horas do que seria a nossa aproximação ao horário solar durante o Verão, e obrigando os Açores a separar-se artificialmente de duas horas do Continente.
Esta situação totalmente aberrante – que só tinha paralelo na lógica do mandarinato chinês – foi felizmente corrigida pelo primeiro governo de António Guterres que nos fez voltar ao horário anterior.
Como sabemos, a União Europeia resolveu finalmente pôr fim ao sistema de mudança horária, sistema inventado há quase um século para poupar energia numa sociedade de ritmos industriais que já não existe.
Entre nós, o organismo responsável pelo tema, o “Observatório Astronómico de Lisboa” emitiu um volumoso parecer técnico criticando a medida. Fundamentalmente, o observatório diz-nos que estamos mais habituados à falta de luz ao cair do dia do que ao princípio do dia, e por isso os nossos horários fazem com que, se seguirmos sempre os mesmos horários, no Verão, passemos uma boa parte do dia com Sol sem o aproveitarmos.
O que penso não ter sido equacionado pelo Observatório é que perante esse problema, a solução lógica e prática não é dizer que são oito horas quando na verdade o planeta diz que são apenas seis; a solução é, ou adaptar os horários legais à realidade solar, ou fazer o que as comunidades rurais sempre fizeram ancestralmente, adaptar directamente a sua actividade à realidade solar, sem cuidar de horários.
A questão é simplesmente a de entender que é a nossa vida e as nossas convenções legais que devem fazer o que se considere conveniente para se adaptar à forma como o nosso planeta roda e não pretender o contrário, que é o planeta que tem que se adaptar a hábitos, normas ou convenções humanos.
Se se entender que é melhor que as instituições, e em particular as escolas, tenham horários diferentes de Verão e de Inverno, a solução natural é a de adaptar o horário de funcionamento das instituições, com um horário no Inverno e outro no Verão (ou mais ainda se se julgar útil e necessário) não é adaptar a hora legal que deve traduzir o movimento da Terra. E isto deveria ser particularmente óbvio para o Observatório Astronómico.
Mas avança ainda o Observatório com outra linha de raciocínio, que é a de que a decisão não deveria ser respeitada em Portugal, porque o portugueses participaram menos na consulta pública do que outros europeus.
Esta linha de raciocínio, de que deveríamos ser todos prisioneiros dos que se abstêm, que não olha para o facto não menos importante de que Portugal não vive em isolamento dos seus vizinhos, poderia teoricamente levar-nos a uma situação em que a nossa hora legal nos colocaria como se estivéssemos a Leste da Espanha ou da Grã-Bretanha, em vez de estarmos a Oeste, como de facto estamos. Seria uma situação absurda!
Creio que a decisão das instituições europeias foi acertada, creio que recorreu a um mecanismo de consulta apropriado, e se os portugueses não participaram suficientemente na consulta, e se as instituições nacionais – a começar pelo Observatório Astronómico de Lisboa – não mobilizaram convenientemente a opinião pública para uma maior participação e nem sequer deram opinião em tempo oportuno, o problema é português e de mais ninguém.
O parecer do “Observatório Astronómico de Lisboa”, surpreendentemente, surge depois de terminado o prazo de consulta pública – literalmente fora de horas – e não encontra nas suas 44 páginas espaço para se pronunciar sobre a questão sobre a qual era relevante que agora se pronunciasse: deve o país adoptar o que resultaria da adaptação directa ao país da nossa posição geográfica (Continente mais Madeira, UTC-1; Açores, UTC-2), adoptar a aproximação à Europa distanciando-nos de uma hora da opção mais natural, ou seja, adaptar o que é hoje a hora de Inverno, ou afastar-nos duas horas dessa opção natural todo o ano.
Para minha surpresa vi já defender na imprensa soluções que me parecem ir no sentido da desastrosa solução encontrada pelo Governo de Cavaco Silva: afastar-se o Continente duas horas do que é a solução normal.
Creio que isto seria um absurdo, como me parece ser igualmente um absurdo invocar o “BREXIT” como o faz o presente citado parecer. Torcer o que seria a solução normal portuguesa para nos aproximarmos uma hora dos países do centro da Europa – o que é o que já acontece no Inverno – só é compreensível e aceitável pelo longo hábito que temos de o fazer. Torcer ainda mais a realidade para nos aproximarmos do meridiano de Berlim, parece-me de todo em todo inaceitável.
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