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João de Sousa

Sábado, Novembro 2, 2024

A hora de Von der Leyen

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Menos de um ano depois da sua nomeação, chegou a hora da afirmação de Von der Leyen como Presidente da Comissão Europeia, desmentindo os que – como eu – olharam para ela apenas como mais uma ‘apparatchick’ de uma máquina europeia em plena degradação.

  1. Falar claro

No passado dia 22, segunda-feira, na cimeira anual euro-chinesa, a vigésima segunda, no seu primeiro frente a frente face ao presidente chinês Xi Peng (em formato vídeo por força das circunstâncias), Von der Leyen disse-lhe o que se impunha: os ciberataques a hospitais europeus no auge da pandemia e a campanha de desinformação destinada a promover o pânico desenvolvidos pelas autoridades chinesas são intoleráveis.

Aviso claro e inequívoco publicado em comunicado de imprensa no mesmo dia da cimeira, justificar-se-á, como me diz um amigo funcionário das instituições, pelo facto de Von der Leyen ser médica e ser ex-ministra da defesa, ou seja, como profissional da saúde ser especialmente sensível a esta monstruosa política chinesa, e entender ao mesmo tempo como ela põe em causa o coração da defesa europeia.

Será certamente verdade, mas não é menos verdade que isso mostra que estamos perante um ser humano que recusou a lógica do apaziguamento e do dinheiro que está a destruir a Europa e todo o Ocidente, pela qual estes ‘deslizes’ do Partido Comunista da China são aceitáveis enquanto continuarem a afluir os negócios e os lugares da oligarquia não estejam aparentemente em causa.

 

  1. Enfrentar a máquina de propaganda

Para que este aviso possa ter consequências, a primeira das batalhas a que Von der Leyen tem de dar a prioridade é à da comunicação, que no Ocidente está nos nossos dias largamente nas mãos chinesas (as sanções norte-americanas secaram grande parte da capacidade irano-venezuelana de compra de jornais e jornalistas) como nos explica um recente relatório da Federação Internacional dos Jornalistas.

Para se dar conta do grau de controlo chinês sobre a informação ocidental, nada melhor do que ver a censura e a distorção de que as declarações de Von der Leyen foram alvo na imprensa ocidental, numa imprensa que todos os dias nos enche com histórias de terror sobre o vírus mas que não achou relevante explicar até que ponto as autoridades chinesas têm responsabilidades na crise que enfrentamos.

Em Portugal, por exemplo, as únicas notícias dadas sobre as declarações da Presidente da Comissão Europeia foram cópias de um despacho da ‘Agência Lusa’ exemplo óbvio de uma política de desinformação sobre a qual as autoridades portuguesas deveriam encarar como uma falha brutal no sistema de defesa nacional.

O despacho, datado do dia seguinte, às 21H56 (presumivelmente hora portuguesa) começa por falsear a data do comunicado europeu, como se este fosse do dia 23 e não do dia 22, falseamento que não é inocente e que serve para o tom de desvirtuamento da importância da declaração europeia assumida pela agência. Pretende a Lusa que ‘As declarações de Von der Leyen foram feitas depois de reuniões virtuais’ tentando minimizar a importância de estas terem sido feitas em discurso directo, presencialmente, e não depois. Junta-lhe depois as condicionantes típicas da manipulação informativa quando se quer desvirtuar a mensagem: ‘Os europeus expressaram aos chineses o seu descontentamento pelo que classificaram como uma significativa campanha de desinformação em torno da pandemia do novo coronavírus, iniciada na China’. Ou seja, a campanha de desinformação não é mais do que óbvia, é antes produto da ‘classificação’ feita pelos europeus.

Mas para além desta adulteração da mensagem de Von der Leyen, nem um único jornal português deu qualquer destaque ao que foi obviamente a mais importante declaração europeia dos últimos tempos, limitando-se alguns a referenciar este despacho da Lusa.

Mas desengane-se quem pensar que se trata de um fenómeno puramente português. Na Bélgica francófona, o canal público de informação, RTBF (Rádio, televisão belga francófona) que tinha anunciado a cimeira em tom de propaganda pró-chinesa como sendo a grande ocasião de aproximação euro-chinesa, nem uma palavra disse sobre a mesma após a sua realização.

Para além das agências Euroactiv e Politico que gravitam em torno das instituições europeias, a imprensa internacional não deu destaque em tempo oportuno às palavras da Comissária, tendo a imprensa francesa, britânica e americana fazendo tardiamente e com pouco destaque referido a mesma.

Por isso, se Von der Leyen quer olhar a sério para os trabalhos que tem pela frente, a primeira coisa que tem de fazer é entender a importância da guerra da comunicação. Com a máquina de comunicação sem capacidade ou sem vontade de fazer o seu serviço e com a maior parte da imprensa europeia a trabalhar para o inimigo, não poderá certamente vencer qualquer batalha.

  1. As prioridades políticas

Depois da batalha da informação, várias outras se perfilam, sendo que duas delas, a orçamental e a ambiental, em que ela se empenhou fortemente, merecem uma atenção especial.

A ideia de fazer do orçamento europeu uma máquina de combate aos efeitos devastadores do pânico pandémico é naturalmente generosa, mas é uma ideia que ela deve entender que não funciona, nem vai funcionar. Quanto mais depressa se der conta disso, melhor.

A máquina orçamental europeia – especialmente depois das alterações infelizes que lhe trouxe o Tratado de Lisboa – não está apta a responder a nenhum dos desafios colocados pela pandemia.

No plano da saúde, a máquina europeia está na mão da ‘big-pharma’ cujo interesse não é promover a saúde, mas antes fazer negócio com a doença. Todas as opções estratégicas a que ela tem submetido a Europa são contraproducentes. A solução aqui é reformar a máquina, e acredito que Von der Leyen será capaz de o vir a entender, mas é uma solução de longo prazo, a curto prazo, não há nada a fazer.

No plano da resposta anticrise, tão pouco há a esperar o que quer que seja dos mecanismos financeiros europeus. Os mecanismos de regateio orçamental entre os Estados são de uma enorme complexidade e inércia. O tempo em que eles funcionam não é o tempo da crise, e é seguro que o produto negocial estará cheio de alçapões destinados a retirar-lhes toda a eficácia. Esqueça o seu Mega plano, ou melhor, deixe-o navegar sem ter qualquer ilusão quanto à possibilidade de ele se vir a materializar em tempo útil como idealizado. A verdadeira batalha trava-se no Banco Central Europeu e é a essa batalha que é necessário prestar atenção.

É bom que Von der Leyen tenha posto fora de funcionamento a máquina europeia de controlo dos orçamentos nacionais, mas para além disso, não há nada a esperar orçamentalmente no combate à crise. Desse ponto de vista, o aparente estilhaçar da ortodoxia ‘ordoliberal’ em vigor na Alemanha fará mais pela coesão europeia do que qualquer outra iniciativa europeia. Von der Leyen, deve ter isso presente.

A Presidente da Comissão Europeia deve reservar o orçamento europeu para três grandes prioridades:

  1. a coesão europeia baseada na solidariedade;
  2. a investigação, desenvolvimento, disseminação e divulgação que tem de sair da mão das farmacêuticas e outros lóbis para apoiar os investigadores independentes e inovadores e
  3. o desenvolvimento humano, social e ambiental do mundo, num plano de disputa taco a taco ao expansionismo chinês.

Em matéria de ambiente, há que quebrar com a lógica implantada de pagar aos poluidores para que eles passem a fazer aquilo a que a mera racionalidade económica os iria obrigar, reservando os meios financeiros para aquilo que são as responsabilidades públicas. É bom que pare um pouco para reflectir nesta matéria em que a generalidade do anunciado terá uma duvidosa eficácia ambiental.

Haverá certamente mais a dizer, mas para já estes parecem-me ser os pontos essenciais.


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