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Sábado, Dezembro 21, 2024

A humanidade perante a inteligência artificial

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Como a ficção entendeu já o século passado, depois da ameaça nuclear, a inteligência artificial é o maior desafio à sobrevivência da humanidade.

  1. O fim da década Google

Entre todas as empresas do conglomerado tecnológico, a Alphabet, mais conhecida pela marca Google, é talvez a mais simbólica e mais importante. Tornou-se indispensável no nosso quotidiano como enciclopédia de bolso pronta a responder a quase todas as nossas questões; adivinha o nosso pensamento e completa-nos as frases, em que não só corrige os erros ortográficos ou gramaticais, como modela também as palavras de forma o mais socialmente correcta possível; dá-nos as direcções para encontrarmos o nosso destino, e isto para citar apenas alguns dos inúmeros serviços que nos presta sem nos cobrar por isso um único cêntimo.

E há muito que se tornou também notório que essa bênção, aparentemente gratuita, tem os seus custos. Sem publicidade paga, as empresas e serviços desaparecem do primeiro plano; a comunicação social só existe em função do espaço que lhe é dado pelo Google, e este obrigou-a a acordos generalizados onde contra uma pequena parte dos lucros da publicidade que lhe subtraiu, a submete aos seus interesses, nomeadamente através da acção de grupos travestidos de ‘polígrafos’. Grandes interesses providos de fundos suficientes – sejam eles o wahabismo islamista radical do Qatar, ou o negócio das vacinas – ganharam por esta via o quase-monopólio da ‘verdade’.

Dispondo de uma colossal máquina de lobbying (em Bruxelas, consabidamente, a mais colossal) o Google conseguiu escapar, se não ileso, pelo menos sem danos irreparáveis às máquinas estatais que eram supostas controlar a sua capacidade para esmagar a concorrência e para distorcer a realidade.

Mas eis que os ventos viraram. Nos EUA, o Congresso inicia medidas de retorção ao domínio do mercado pela Apple e pela Alphabet, enquanto estas e outras empresas tecnológicas se tornam conhecidas na imprensa pela forma desumana como procedem a despedimentos e não pelos empregos dourados que ofereceram um pouco por todo o mundo.

Com um humor de gelar os ossos, o patrão da Alphabet justificou o despedimento sem aviso nem explicação, feito apenas por corte de acesso físico a instalações ou a sistemas informáticos, pela necessidade de poder responder ao ‘desafio da inteligência artificial’.

Alguns gurus dizem mesmo que a emergência da nova geração de empresas baseadas em Inteligência Artificial’ – a openAI, produtora do ChatGPT – irá acabar com o Google, e esta é mesmo a opinião do fundador do Google.

  1. OpenAI

E a OpenAI promete! Sem referências ou citações, explicando, exactamente como o Hal do 2001 Odisseia no Espaço fazia, que não é humano, o ChatGPT facilita ainda mais a vida do que o que o Google. Não, não é necessário escolher programas ou aplicações ou mesmo palavras chave, basta fazer a pergunta que nos vem à cabeça para ter respostas claras e seguras, eventualmente erradas ou mais provavelmente ainda discutíveis.

Na minha pergunta de teste, qual a parte da água vinda dos Montes Golã na alimentação do Lago Tiberíades, a resposta veio clara, circunstanciada e incisiva: um terço! É verdade que não foi já capaz de me responder à pergunta subsequente de forma quantificada (qual a progressão dessa importância) e limitou-se a dar-me apenas algum jargão sobre ela, explicando em linguagem ‘politicamente correcta’ que era um desafio responder à pergunta, em vez de apenas constatar que não sabia responder.

Ao passar por cima de toda esta ‘tralha’ relativa a fontes e referências, o ChatGPT facilita imenso a vida a quem gosta de factos sem pele nem espinhas, claros e incisivos, tipo ‘já gastámos dois terços do orçamento do carbono deste ano para que o aquecimento não ultrapasse um grau e meio’ (e com tempo e paciência irei verificar como o ChatGPT assumiu o vocabulário do climatês).

Trata-se, no entanto, de uma realidade virtual, que não coincide necessariamente com a verdade e que de passagem esmaga toda a herança humanista e científica dos últimos séculos. É o totalitarismo tecnológico adivinhado ao longo do século XX e que agora se aproxima da realidade de forma irreversível.

  1. E depois da concorrência?

Num artigo dedicado ao tema pela revista Nature preconiza-se tornar a tecnologia da ‘OpenAI’ verdadeiramente aberta, ou seja, na realidade, nacionalizá-la ou autonomizá-la do conglomerado da Microsoft, empresa que está por trás da OpenAI.

A solução parece para já prematura, porque, por enquanto, assistimos a uma guerra aberta entre o que funcionou como um grupo de empresas tecnológicas onde a concertação oligopolista primava sobre a concorrência. De acordo com um boletim informativo da especialidade, a Google declarou guerra à Microsoft, havendo notícias de várias outras iniciativas neste domínio.

Este despertar da concorrência seguiu-se à entrada no mercado de Musk que adquiriu o Twitter e que expôs o conúbio entre a empresa, as autoridades policiais federais americanas e o negócio das farmacêuticas, a fim de censurar vozes discordantes e de deformar a realidade. Não há razões para pensar que o sistema de desinformação montado no Twitter não tenha sido igualmente seguido nas restantes empresas tecnológicas, nem que a venda de vacinas tenha sido o único negócio em favor do qual se registaram tais práticas.

O lançamento do concorrente da Alphabet ao sistema da Microsoft, o BARD, foi para já um monumental fiasco, com o sistema a dar respostas consabidamente erradas a utilizadores, e a empresa a perder mais de 100 milhares de milhões de dólares de valor acionista em consequência, mas numa altura em que a realidade fervilha à volta de do tema, nunca se sabe se assistiremos ainda a inesperadas alterações na posição dos contendores.

Da mesma forma que as empresas tecnológicas criaram um oligopólio em conúbio com as autoridades do seu país para impor narrativas deformadas da realidade mesmo antes do advento da Inteligência Artificial, é bem possível que o mesmo venha a acontecer agora, com consequências ainda mais dramáticas.

Como a ficção entendeu já o século passado, depois da ameaça nuclear, a inteligência artificial é o maior desafio à sobrevivência da humanidade.

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