O amarelo sintoma de doença. A icterícia é definida como a presença de uma cor amarelada na pele, nas membranas mucosas ou nos olhos. Não é uma doença per se, mas sim a manifestação visível de alguma doença subjacente.
Aquilo que tem sido propagandeado – e trata-se propaganda a forma como está a ser explorado o espectáculo dos coletes amarelos – e as manifestações associadas são uma encenação montada para atrair espectadores e aderentes ao circo. Como o fenómeno, a acção dos coletes amarelos é o sintoma de várias doenças de que a Europa sofre.
A Europa é hoje e sente-se hoje como uma entidade política e social fraca e em decadência, talvez não corresponda à realidade, mas é um sentimento. Na realidade e convém dizê-lo, a Europa é hoje o melhor espaço do planeta para viver. É o mais livre – liberdade de informação, liberdade de expressão, liberdade de circulação, liberdade religiosa, liberdade sexual, até liberdade para os inimigos da liberdade. A Europa é a sociedade de convivência dos contrários, a única sociedade onde os seus cidadãos são cidadãos e podem comer porco, vaca e cordeiro, peixe com escamas e sem escamas. Onde não é obrigatória circuncisão para ser cidadão. É uma sociedade politeísta, mas onde se pode ser ateu, agnóstico ou indiferente. Não maniqueísta, onde o Bem e o Mal são relativizados. É a sociedade onde não existe pena de morte, onde é possível tomar banho nu, discutir com um polícia e fazer caricaturas dos salvadores, profetas, reis e rainhas. É também o único espaço onde é comum os cidadãos terem um animal por companhia, onde quase todos os cidadãos bebem água tratada, e os seus dejectos são recolhidos por sistemas eficazes, onde não cheira a merda nas ruas das cidades nem existem epidemias arrasadores, onde a grande maioria dos seus cidadãos sabe ler um cartaz e o nome do destino onde se quer dirigir.
É o paraíso? É, quando comparado com a paisagem à sua volta. Não é quando exigimos o melhor. Isto é, a Europa vive entre a utopia dos direitos absolutos e o mal-estar da desigualdade ofensiva. Entre o banco dos banqueiros e o banco dos sem abrigo.
A icterícia europeia é o sintoma dos vários males e das contradições do tratamento para as doenças de que sintoma. A desigualdade só pode ser abordada limitando ou impedindo a liberdade da exploração – de ser explorado e de se deixar ser explorado – é a utopia socialista, daqui a actualidade de Marx. Os liberais garantem que a prosperidade se alcança com uma conjugação de Maltuhusianismo e de Darwinismo – temos de ser menos para a riqueza dar para todos e safam-se os mais fortes e mais aptos a comer os outros e o dos outros.
A actual icterícia europeia é o reflexo deste antagonismo que esteve na origem da II Guerra Mundial. O populismo dos coletes amarelos representa a reacção da burguesia europeia, da elite instalada, contra a utopia da igualdade que lhe retiraria privilégios – o que inclui a globalização e a entrada dos antigos colonizados na mesa do banquete do comércio mundial.
A II GM resultou em parte (boa parte) do medo dos grupos instalados no topo da sociedade europeia pela utopia comunista. O actual populismo repete essa reacção de medo. Os grupos instalados preferem a guerra das espécies à racionalização da distribuição de bens. O perigo de uma nova grande guerra é real. Os muros que se levantam são um sintoma do mal e da forma como as elites conservadoras e populistas julgam manter o mundo como o querem feito à sai medida.
A icterícia europeia – que aqui em Portugal tem como sintoma as manifestações de violento egoísmo das corporações do Estado através de uma epidemia de greves – é a repetição desse dilema de reagir para manter (a irracionalidade do conservadorismo) ou agir para transformar (a dificuldade do progressismo e do desconhecido).
O actual populismo, tal como os seus antepassados próximos, o nazismo, o fascismo, o estado corporativo – é, ao contrário do que se apresentam pela voz dos seus tenores, um movimento de elites pensantes ao serviço de interesses estabelecidos. O populismo funciona na lógica dos bordéis de luxo: prostitutas, madame e proxenetas tratam do prazer dos senhores de bens e capital.
Voltando à Europa: o populismo, enquanto icterícia, quer fazer crer os europeus de que vivem no pior dos mundos (os ingleses acreditaram no que as suas elites lhes impingiram) para se manterem no poder. Para conseguirem convencer as massas dessa mentira, as elites pensantes do populismo assumem-se como os puros e os patriotas e tratam os outros como os traidores aos valores das tradições. É ao contrário, mas os grandes meios de comunicação de massas tratam de vender o veneno como cura para a doença.
É nesta luta de morte – tal como nos anos 30 e 40 do século passado – que nos encontramos. As manifestações dos coletes amarelos não são por melhor Europa, nem as greves são por melhor futuro para os trabalhadores nem, à sua medida de episódio rasca, a entrevista a um homicida racista é um acto de liberdade de informação. São peças de uma estratégia friamente pensada para destruir aquilo, a Europa, entendida como um espaço civilizacional, que, parafraseando Churchill a propósito da democracia representativa, pode não ser o lugar perfeito para viver mas é o menos mau entre todos os outros.
Ilustração: Paisagem Catalã: O Caçador (Pintura de Joan Miró)