A questão da Lei de Bases da Saúde constitui uma das mais acesas discussões políticas e ideológicas das últimas três décadas, tornando mais visíveis os campos dos negócios, de um lado, e dos valores humanistas, por outro, no delicado sector da Saúde.
Já em 1979 esta delimitação de campos esteve presente, sendo, no entanto de referir que cidadãos posicionados nos quadrantes partidários que votaram contra a criação do SNS (Serviço Nacional de Saúde) tiveram contributos importantes para a sua implementação e consolidação como se verificou, por exemplo, com o Dr. Paulo Mendo, Dr. Albino Aroso e Drª Maria dos Prazeres Beleza.
Durante longos anos houve uma retórica de pura propaganda ideológica onde era repetida à exaustão a “natural” e “inevitável” superioridade da gestão privada em relação à pública.
Com a derrocada, na última década, de importantes impérios multinacionais e a implosão de várias entidades bancárias, essa propaganda ideológica contra as políticas sociais adaptou-se às novas circunstâncias para não cair em argumentos descredibilizadores dos seus reais objectivos, esmorecendo nesses conceitos de superioridade da gestão privada.
Um denominado “conselho estratégico” da actual direcção do PSD elaborou um documento sobre a Saúde, que foi posteriormente assumido programaticamente, onde surgiu um argumento que apregoa que não importa se a gestão é pública ou privada pois o que interessa é satisfazer as necessidades das pessoas a nível dos cuidados de saúde.
Entretanto, alguns comentadores com colunas de opinião regulares em vários órgãos de informação apressaram-se a repetir organizadamente durante semanas esse curioso argumento.
Como já referi em anteriores artigos de opinião, os dois tipos de gestão têm objectivos e dinâmicas distintas.
Aquilo que esses sectores partidários defendem é que o orçamento público assegure a construção de unidades de saúde, as entregue para serem geridas a empresas privadas e ainda por cima lhes garanta o financiamento da sua actividade.
Se não importa se a gestão é pública ou privada, perguntem, por exemplo, aos principais accionistas do Grupo Sonae ou do Grupo Amorim se lhes é indiferente entregar a gestão das suas empresas a pessoas da sua confiança que lhes garantam lucros para o seu investimento ou que esses cargos sejam ocupados por nomeados por um governo e cujos lucros não revertam para o bolso dos accionistas, mas que sejam dirigidos para resolver problemas sociais.
Todos temos a certeza, fácil, de qual seria a resposta!
Em todo este contexto, surge um facto político e ideológico protagonizado pelo Presidente da República (PR) que assume uma enorme gravidade com implicações no próprio regime democrático: a ameaça repetida de veto presidencial à futura Lei de Bases da Saúde que vier a ser aprovada pela Assembleia da República, se essa aprovação não merecer a concordância do seu partido, do qual já foi líder.
Esta atitude lamentável do PR é uma chantagem institucional e política que tenta condicionar a livre expressão do voto dos deputados
Segundo vários órgãos de informação têm repetido, o PR fez declarações públicas onde exige “um consenso de regime “ em torno desta matéria, onde considera que a nova legislação não pode ser aprovada só com os votos da esquerda, que não há nova lei de bases sem o voto da direita e que não deve existir grande clivagem entre PS e PSD, caso contrário exerce o seu veto.
Ou seja, uma clara maioria de deputados aprova uma lei, mas desde que o seu partido não esteja de acordo ou não consiga impor discricionariamente a sua vontade, como aconteceu em 1990 com a actual lei de bases, o PR veta.
Trata-se de um claro afrontamento político ao Parlamento, que nem num regime presidencialista se poderia tolerar.
Esta atitude lamentável do PR é uma chantagem institucional e política que tenta condicionar a livre expressão do voto dos deputados.
É notório o facto de todos os projectos dos vários partidos terem baixado à discussão na comissão parlamentar respectiva, enquanto em 1990 foi a imposição pura e dura da maioria conjuntural de deputados então existente.
Para o PR, a legítima diferença de opiniões e mesmo de clivagens não podem existir desde que seja desfavorável ao seu campo partidário.
A esquerda está proibida, pelos vistos, de aprovar diplomas, porque o PR considera que o voto dos deputados de esquerda não tem o mesmo valor democrático que os de direita.
De acordo com a Constituição, o PR tem nas suas competências o direito de veto.
Não é esse direito que está em causa, como é óbvio, mas os argumentos, de enorme incoerência, utilizados pelo PR para dificultar a aprovação maioritária de um diploma desta importância para os nossos cidadãos.
Esta posição político-ideológica é uma manifestação clara de pensamento único e daí ao conceito de ideologia única ou de partido único é um passo curto.
A esquerda não pode ceder a chantagens, porque se o fizer cai no descrédito perante o eleitorado e deixa de ser encarada com uma alternativa competente para defender os direitos sociais e a construção de uma sociedade mais humanizada.
Olhemos para a Europa e vejamos que nos países onde a esquerda cedeu ao pensamento único acabou por ser “varrida” do mapa político-eleitoral.
Aprendamos, a tempo, com os exemplos alheios!