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Sábado, Novembro 2, 2024

A impunidade do terrorismo iraniano e os seus limites

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Hoje é o Irão, amanhã será todo e qualquer regime criminoso, a começar naturalmente pelo de Putin, que deve estar a seguir este tema com a maior atenção por razões óbvias.

  1. A condenação de Hamid Nouri

Hamid Nouri foi finalmente condenado a prisão perpétua pela sua participação em 1988, nas prisões iranianas, no massacre de dezenas de milhares de presos políticos – quase todos membros da principal organização de oposição, a Organização dos Mujahedin do Povo Iraniano. A condenação foi possível porque se tratou de um crime contra a humanidade abrangido pelo princípio da jurisdição universal adoptado pela Suécia.

Hamid Nouri, como tantos outros carrascos do fanatismo islâmico, foi recrutado nos primórdios da revolução islâmica para os Guardas Revolucionários Islâmicos e foi nessa qualidade que se empenhou no assassínio de opositores na prisão de Gohardasht, uma das muitas onde os massacres se desenvolveram.

O massacre de 1988 foi feito em obediência a uma fatwa do Ayatollah Khomeini que continua em vigor, ao abrigo da qual toda e qualquer pessoa com laços à oposição política iraniana deve ser assassinada. Tratou-se de uma evolução importante da ditadura iraniana que passou e passa por cima de todo o processo que, mesmo num regime totalitário como o iraniano, existe, e levou de resto à dissensão do Ayatollah Montazeri – na altura o número dois do regime – que viria por essa razão a ser expurgado.

É ao abrigo dessa fatwa que o Irão prosseguiu inúmeros atentados terroristas em todo o mundo tendo como objectivo assassinar os seus opositores.

Hamid Nouri foi preso e condenado porque acreditou na impunidade dos assassínios cometidos pelo regime e por isso se deslocou a Estocolmo, onde foi preso.

O seu julgamento envolveu centenas de testemunhos – muitos, testemunhos directos presenciais de sobreviventes recolhidos nalguns casos na Albânia, onde o Tribunal se deslocou para os ouvir.

O processo de Hamid Nouri é o processo do regime teocrático iraniano e do seu corpo dedicado de criminosos encarregados de torturar e assassinar os opositores, corpo no qual o actual presidente, Ebrahim Raisi, fez todo o seu percurso profissional.

  1. A justiça suspende a aplicação do acordo belga-iraniano

Como referi no Tornado de 4 de Julho, o governo belga assinou em Março um acordo de extradição com o Irão que teve como objectivo assumido a libertação do diplomata iraniano que coordenou o atentado terrorista falhado de Paris de 2018.

O acordo acabou por passar no parlamento, após uma vergonhosa campanha em que publicamente se envolveu o Primeiro-ministro que apontava a libertação do terrorista como um indispensável acto humanitário destinado a obter a libertação de um refém belga, Olivier Vandecasteele, preso em fevereiro no Irão.

Se a troca de reféns por terroristas iranianos – e mesmo de armamento e de quantias avultadíssimas – tem sido política corrente do Ocidente, e em especial dos EUA, muito em espacial sob as presidências de Reagan e de Obama, as autoridades têm procedido com alguma discrição (normalmente através de operações conduzidas pelos serviços de informação), e nenhum governo tinha tido ainda o descaramento de pôr tal coisa em letra de lei.

Ou seja, se é verdade que o comércio e o conluio com o fanatismo islâmico iraniano têm sido a norma – tenho por mim que o regime já teria sido derrubado pelo seu povo se não gozasse do apoio ocidental – ninguém tinha tido ainda a falta de vergonha de rasgar o princípio da separação de poderes, colocando o executivo a desfazer o que o sistema judicial tinha feito; assumir estar a trabalhar pela libertação de um entre a cerca de duas dezenas de pessoas classificados como terrorista pela União Europeia ( o que é tipificado legalmente como crime) e insultar igualmente a segurança dos cidadãos.

As autoridades judiciais belgas responderam gelando o diploma aprovado pelo parlamento – e seria difícil de entender que fizesse o contrário – e anunciando para Setembro o processo de julgamento dessa lei, o que quer dizer que, por ora, o negócio irano-belga está suspenso.

  1. Cidadania, precisa-se!

O partido dos Verdes, que faz parte da coligação que sustenta o governo belga que concluiu sob forma de lei este abjecto tráfico em março deste ano, foi acusado pela oposição de se ter oposto ao envio de capacetes para a Ucrânia mesmo antes da invasão russa alegando que o envio de material de defesa para a Ucrânia poderia ser visto como uma provocação pelo agressor.

O processo psicológico conhecido como ‘síndroma de Estocolmo’ começa sempre desta forma. A agressão provoca uma reacção de medo incontrolado (pânico) que leva a que se diga que sim a tudo o que o agressor pede a fim de o apaziguar, mesmo quando toda a evidência indica que a cedência não apazigua, mas, pelo contrário, acentua o sentimento de eficácia da agressão e a estimula.

A partir de um certo ponto, a necessidade de apaziguar leva mesmo a que se invertam os papeis entre agressor e agredido e a vítima se identifique com o agressor, num processo que ficou conhecido como síndroma de Estocolmo.

Se até hoje a tendência dominante foi a de fazer discretamente os negócios com os terroristas, este tratado irano-belga revela uma tendência mais preocupante que é a de assumir a total imoralidade e inconstitucionalidade a fim de apaziguar ó algoz.

No mundo em que vivemos, nenhum sistema político pode sobreviver a uma lógica destas. Hoje é o Irão, amanhã será todo e qualquer regime criminoso, a começar naturalmente pelo de Putin, que deve estar a seguir este tema com a maior atenção por razões óbvias.

Ou tomamos a sério aquilo que temos pela frente, ou é melhor começarmos a preparar-nos para o pior.

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