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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

A legalidade democrática e a imparcialidade do juiz

A garantia da imparcialidade do juiz e o crepúsculo dos heróis – Este artigo é para os operadores do direito que entendem que os atos revelados do juiz Moro são corriqueiros e estão sendo objeto de exagerado estardalhaço.

“All right, Mr. DeMille, I’m ready for my close-up.”
Norma Desmond, em “O Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder[1]

As revelações do “The Intercept Brasil[2] acerca do teor das conversas mantidas em chats privados entre o juiz Sérgio Moro e os procuradores da República integrantes da “Força-tarefa Lava-jato” provocaram reações entre os vários setores da sociedade e, particularmente, no meio jurídico.

As reportagens revelaram a atuação do juiz na indicação ao órgão acusatório de pessoa para inquirição na fase pré-processual, na escolha dos procuradores que deveriam ser escalados para interrogatórios, na ordem e no momento da deflagração de operações, criticando a estratégia recursal do órgão acusatório pelo retardamento na instauração da execução provisória de penas e, até mesmo, sugerindo a publicação de nota, a fim de dirigir a estratégia de comunicação do órgão acusatório com a imprensa.

Dentre os “operadores do direito”, muitos vieram a público sustentar a total impropriedade da conduta do juiz Moro[3], sendo o conteúdo das conversas uma evidência daquilo que já vinha sendo denunciado por muitos estudiosos do processo penal: a forma parcial como vinha se conduzindo nos diversos processos que integram a alcunhada “Operação Lava-jato”.

O artigo 254, IV do Código de Processo Penal veda que o juiz oriente quaisquer das partes

Outros, dentre os quais o próprio Ministro da Justiça, pronunciaram-se pela negativa de validade formal dos achados, por se tratar de fruto de crime e, portanto, inválidos para qualquer finalidade e outros, ainda, por minimizar o próprio conteúdo dos diálogos, ao enunciar que conversas entre juízes e promotores ou entre juízes e procuradores da República são comuns na prática judiciária e, portanto, não deveriam causar maior escândalo, já que se trata de coisa rotineira no dia-a-dia da jurisdição criminal.

Nesse artigo, eu gostaria de me dirigir ao último grupo: aqueles operadores do direito que entendem que os atos revelados pelo “The Intercept” são corriqueiros e estão sendo objeto de exagerado estardalhaço.

Todo aluno de graduação em direito, em suas primeiras aulas de teoria geral do processo ou de direito processual penal, vai ouvir de seus mestres que a imparcialidade não é apenas uma garantia do cidadão, mas característica que define a jurisdição e a diferencia das demais manifestações de poder no Estado de Direito.

Como explica ZAFFARONI:

A jurisdição não existe se não for imparcial. Isto deve ser devidamente esclarecido: não se trata de que a jurisdição possa ou não ser imparcial e se não o for não cumpra eficazmente sua função, mas que sem imparcialidade não há jurisdição. A imparcialidade é a essência da jurisdicionariedade e não o seu acidente[4].

A atuação de todo e qualquer juiz somente pode ser concebida como verdadeiro exercício da função jurisdicional se for imparcial.

Decisões proferidas por juízes suspeitos ou impedidos podem, inclusive, ser consideradas nulas, já que não podem ser caracterizadas como “jurisdicionais”, na medida em que não foram proferidas por um órgão desinteressado e eqüidistante das partes do processo.

Toda pessoa tem direito a um juiz imparcial

Por essa razão, o artigo 254, IV do Código de Processo Penal veda que o juiz oriente quaisquer das partes. Um processo, em tais condições, já direcionado pelas convicções do magistrado para um determinado desfecho, nada mais representaria do que uma encenação, uma pantomima, um ritual vazio de significado.

Como sintetiza Antonio Magalhães Gomes Filho:

a imparcialidade constitui um valor que se manifesta, sobretudo no âmbito interno do processo, traduzindo a exigência de que na direção de toda a atividade processual – e especialmente nos momentos de decisão – o juiz se coloque sempre super partes, conduzindo-se como um terceiro desinteressado, acima, portanto, dos interesses em conflito[5]

Na jurisdição penal, em especial, a imparcialidade adquire ainda maior relevância, diante de seu papel fundamental de servir de freio ao poder estatal de punir.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1950, em seu artigo 6º, classifica como inerente a todo ser humano, o direito ao julgamento justo, no qual a imparcialidade do órgão julgador é traço essencial. Da mesma forma, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que teve como modelo a Convenção Europeia, estabeleceu em seu artigo 8º:

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente pela lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (grifo nosso).

O artigo 14 do Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos da Organização das Nações Unidas estabelece que:

Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil.

A separação entre o Estado-acusador e o Estado-juiz é o pilar no qual se assenta o sistema acusatório

Na mesma linha dos grandes tratados internacionais de direitos humanos, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LVI), conceito que inclui, necessariamente, a garantia da imparcialidade do órgão julgador. A Carta de 1988 também consagra o direito de toda pessoa à ampla defesa e ao contraditório com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV).

Ainda nas primeiras aulas de Teoria Geral do Processo, somos ensinados que a ação penal compete privativamente ao Ministério Público (art, 129, I da Constituição Federal de 1988) e que a separação entre o papel do Estado-acusador e do Estado-juiz é o pilar no qual se assenta o sistema acusatório.

Ou seja, a Constituição Federal de 1988, estabeleceu um sistema processual no qual as funções da acusação, da defesa e do juiz não se podem confundir. Como didaticamente esclarece Aury Lopes Junior, o sistema acusatório se caracteriza:

  1. pela radical separação das atividades de quem acusa e de quem julga;
  2. cabe às partes a iniciativa probatória;
  3. o juiz é um terceiro imparcial, alheio à investigação e marcado pela passividade no tocante à coleta da prova;
  4. as partes devem ser tratadas de maneira igualitária, com iguais oportunidades no processo;
  5. procedimento marcado pela publicidade, direito ao contraditório e à defesa;
  6. ausência de tarifamento probatório embasando a sentença o livre convencimento motivado do juiz;
  7. segurança jurídica pela coisa julgada;
  8. possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição[6].

Imparcialidade não se confunde com neutralidade

Portanto, já nas primeiras aulas de Teoria Geral do Processo ou de Processo Penal, os graduandos em direito já estão habilitados a compreender que não cabe ao juiz, no normal funcionamento do sistema acusatório, influenciar na coleta das provas e, muito menos, direcionar, ajustar ou combinar estratégias de investigação, de condução da acusação em juízo ou ainda, no plano extraprocessual, de estimular ou solicitar ao Ministério Público que adote determinadas estratégias de comunicação social que explorem aspectos desfavoráveis aos réus de qualquer processo.

Isso não é corriqueiro e não se constitui, ou ao menos não deveria ser, o “dia-a-dia” das práticas processuais de milhares de juízes pelo Brasil afora.

Ainda que no dia-a-dia das audiências criminais, juízes e promotores ou procuradores da República possam manter relacionamentos educados e cordiais, a cordialidade “institucional” não vai ao ponto de confundir os papéis dos sujeitos processuais e nem de estabelecer verdadeiro consórcio entre jurisdição e acusação ao arrepio das garantias plasmadas nos tratados internacionais de direitos, na Constituição Federal e nas leis.

Ainda no universo das primeiras aulas de Teoria Geral do Processo e de Direito Processual, é comum falar-se que imparcialidade não se confunde com neutralidade, ou seja, que o juiz, na atividade de julgar, não pode se isolar do mundo em que vive, com toda a sua complexidade.

Nas palavras de POZZEBON:

todos os seres humanos, sem exceção, fazem uma leitura própria da sociedade em que vivem, com seus antagonismos, injustiças e costumes, e imprimem, às decisões que proferem, uma carga valorativa que expressa, justamente, esta leitura e, acima de tudo, o seu posicionamento crítico frente a ela. A figura do magistrado não é exceção[7].

Todavia, mesmo a se considerar a impossibilidade ou mesmo a indesejabilidade da figura do juiz neutro, não é possível, sob tal argumento, dar chancela à atuação de um juiz fora dos limites da lei e dos princípios constitucionais.

Admite-se que o juiz, ao interpretar a lei, examinar a prova e decidir, o faça de acordo com seus valores.

Não se admite, entretanto, que em nome de uma suposta “subjetividade contemporânea” ou de quaisquer valores que privilegie dentro de sua pauta axiológica, o juiz confunda sua atuação com a acusação.

Ainda em sede de lições elementares, todo magistrado, ao ingressar nas escolas judiciais, nas quais receberá sua formação inicial, deverá ler e estudar os “Princípios de Bangalore de Conduta Judicial”, elaborados pelo grupo de integridade da Organização das Nações Unidas.

Qualquer juiz a cujo respeito houver razão legítima para temer uma falta de imparcialidade deve retirar-se

A imparcialidade do juiz, enunciada pelos “Princípios de Bangalore”, como o valor 2, logo após a independência, é definida da seguinte forma: “a imparcialidade é essencial para o apropriado cumprimento dos deveres do cargo de juiz. Aplica-se não somente à decisão, mas também ao processo de tomada de decisão”.

Nos Comentários aos Princípios, publicados pelo Conselho da Justiça Federal, acerca da imparcialidade do juiz, extrai-se o seguinte trecho, de seu item 53:

A Corte Europeia tem explicado que há dois aspectos da exigência de imparcialidade. Primeiro, o tribunal deve ser subjetivamente imparcial, i.e., nenhum membro do tribunal deve deter qualquer preconceito ou parcialidade pessoais. A imparcialidade pessoal deve ser presumida a menos que haja evidência em contrário. Segundo, o tribunal deve ser imparcial a partir de um ponto de vista objetivo, i.e. ele deve oferecer garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima a seu respeito. Sob esta análise, deve-se determinar se, não obstante a conduta pessoal do juiz, há determinados fatos que podem levantar dúvidas acerca de sua imparcialidade. Desse modo, até mesmo aparências podem ser de certa importância. O que está em questão é a confiança com que as cortes, em uma sociedade democrática, devem inspirar no público, incluindo uma pessoa acusada. Consequentemente, qualquer juiz a cujo respeito houver razão legítima para temer uma falta de imparcialidade deve retirar-se[8].

Ou seja, não basta ser subjetivamente imparcial. É necessário que a imparcialidade seja demonstrada objetivamente e assim percebida pelo contexto social em que inserido o magistrado, sob pena da erosão da credibilidade do Poder Judiciário no cenário institucional.

Dito isso, se a volta ao estudo dos princípios da Teoria Geral do Processo e do Direito Processual Penal ou mesmo das primeiras lições de ética e conduta judicial não forem suficientes para demonstrar como as condutas de um juiz que se torna chefe de uma equipe de investigadores e promotores são parciais, inadequadas, danosas para o processo e para o próprio Poder Judiciário pela fragilização de sua credibilidade, talvez seja necessário o auxílio de outros campos do conhecimento.

Sabe-se quão doloroso pode ser o processo de desconstrução de heróis. Neste caso, o recurso à arte é sempre interessante

No clássico “O Crepúsculo dos Deuses”, premiado com o Oscar de melhor roteiro original, em 1951, retrata-se, entre outras questões, a difícil travessia do cinema mudo para o cinema sonoro, no qual muitas estrelas consagradas, devido ao tom da voz e outras inadequações aos novos tempos da sétima arte, entraram em rápida decadência. O filme mostra como a fase da negação, se não superada, pode trazer trágicas consequências.

Depois da leitura dos manuais de “Teoria Geral do Processo” e dos “Comentários aos Princípios de Bangalore”, assistir ao clássico da filmografia norte-americana, com a mente aberta e o espírito desarmado, pode ser um exercício interessante para os que se dispõem a analisar a questão com isenção.

Tal exercício talvez permita analisar adequadamente os fatos recentes, ponderar sua gravidade e, a partir da história de Norma Desmond, compreender os riscos envolvidos na obstinação em se negar a realidade.

  • GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
  • LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminares no processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003.
  • POZZEBON, Fabrício Dreyer. A imparcialidade do juiz no processo penal brasileiro. In: Revista da AJURIS, ano XXXIV, numero 108, dezembro de 2007, p. 167/182.
  • ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

[1] 30 frases inesquecíveis do cinema, Acesso em 17/06/2019.

[2] The Intercept_ Brasil, Acesso em 17/06/2019.

[3] “Combate à corrupção que desrespeita direitos fundamentais destrói democracia”, Acesso em 17/06/2019; Lavajatogate: juiz das garantias? Uma resposta a Merval Pereira, Acesso em 17/06/2019.

[4] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 86 e 91.

[5] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 37.

[6] LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminares no processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003, p. 14.

[7] POZZEBON, Fabrício Dreyer. A imparcialidade do juiz no processo penal brasileiro. In: Revista da AJURIS, ano XXXIV, numero 108, dezembro de 2007, p. 174/175.

[8] Comentários aos princípios de Bangalore de Conduta Judicial , Acesso em 17/06/2019.


por Claudia Maria Dadico, Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS, mestre em Direito Processual pela USP, Juíza Federal e conselheira da Associação Juízes para a Democracia | Texto original em português do Brasil

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