Revogar a presente lei e abrir um período de debate público com o objectivo de encontrar a melhor forma de estender a defesa da liberdade de expressão e de informação ao ciberespaço parece-me ser o primeiro passo a dar.
Lei 27/2021 da Assembleia da República
Finalmente, a escassos dias da entrada em vigor da lei 27/2021 da Assembleia da República que, no número seis do seu artigo 6 institui a oficialização de comissões privadas com poderes censórios credenciadas pelo Estado e assistidas pelo erário público, duas das figuras político-mediáticas do nosso país, António Barreto e Pacheco Pereira vieram a público opor-se frontalmente à lei proposta pelo PS e pelo PAN aprovada sem votos contra na Assembleia da República apenas com as abstenções do PCP, PEV, IL e Chega.
Antes, pelo que me fui apercebendo nas redes sociais, alguns jornalistas tinham já protestado, tendo intuído que está em causa voltarmos aos tempos da Santa Inquisição ou do Estado Novo, sendo que, apenas após estas críticas, um dos partidos que se tinha abstido, o IL, se mostrou arrependido pedindo a reanálise da lei em causa, com a revogação do artigo que reintroduz a censura (o artigo 6.°).
O artigo afirma cumprir o ‘Plano Europeu de Ação contra a Desinformação’ sem referenciar o texto, que não está publicado em língua portuguesa, que não é um texto legislativo, que é de 2018 e é centrado nas eleições europeias de 2019, e que em nenhum Estado de Direito pode servir de base legal para sanções.
Na verdade, como defendi em artigo (Os patrões do ciberespaço e a desinformação) publicado, aquilo a que é fundamental olhar é a acção do lóbi organizado pelo oligopólio das empresas tecnológicas, muito em particular a Alphabet, empresa mãe da Google que já provou ser capaz de produzir a mais tóxica das desinformações em nome da luta contra a desinformação.
O jornalista Nuno Miguel Ropio, em excelente artigo publicado dia 2 de junho na Visão, dá-nos conta das profundas reservas colocadas tanto pelo Conselho Superior da Magistratura como da Entidade Reguladora da Comunicação Social que foram liminarmente ignoradas pela tanto pela Assembleia da República como pela Presidência da República.
O parecer negativo da ERC é claro quanto aos perigos colocados pelo dispositivo legal à salvaguarda da liberdade, direitos e garantias:
‘A consagração de um incentivo à interferência por plataformas digitais e redes sociais nos conteúdos dos utilizadores, sem o estabelecimento de quaisquer medidas de salvaguarda que assegurem o respeito pelos direitos fundamentais daqueles, carece, no mínimo, de cautelas, devendo sempre assegurar-se que tal estímulo não conduz a uma limitação desproporcionada e injustificada da liberdade de expressão. Ter-se-á por adequada, necessária e proporcional em todas as circunstâncias, a interferência de plataformas digitais e redes sociais nos conteúdos dos utilizadores? Estarão estes operadores apetrechados para a concretização de factchecking? Quais os critérios para o efeito?
(sublinhado da minha responsabilidade)
O parecer da ERC – com um nível técnico claramente superior ao da lei – poderia aliás prosseguir tendo por base a análise da realidade.
O que está em causa
Se quisermos analisar o sistema de censura que se está a procurar impor, a primeira coisa a fazer é perceber quais os actores e qual a cronologia dos acontecimentos.
- As empresas tecnológicas – muito em especial a Alphabet – investiram somas colossais em pressão junto das autoridades públicas, em especial as instituições comunitárias e o Conselho Europeu, bem como em controlo dos principais meios de comunicação social.
- Toda a parafernália de temas e instrumentos para ‘combater a desinformação’ ou mesmo a ‘desordem informativa’, incluindo os polígrafos (factcheckers) foram preconizados e postos em prática diretamente por estas empresas, por organizações não governamentais subsidiadas por elas ou por subvenções a empresas de comunicação social dadas por estas empresas tecnológicas antes de aparecerem em documentos de entidades públicas ou de leis como a 27/2021.
- Em Portugal, por exemplo, o Público foi das empresas financiadas pelo Google e em França foram dezenas, com impactos que são devastadores para o pluralismo, a liberdade de expressão e a imparcialidade. As empresas tecnológicas ficaram com o grosso do mercado publicitário de que vivia a comunicação social, sendo que cada vez menos pessoas estão dispostas a pagar essa informação, pelo que as empresas tecnológicas podem permitir-se, com esses fundos, comprar a fidelidade da comunicação social tradicional.
- Como todas as iniciativas de censura, também esta se proclama como movida apenas pela defesa da verdade e da protecção do cidadão dos negros desígnios da mentira, tendo na primeira campanha pública que levou a cabo (2017 em França) exibido um grande número de vitórias da verdade sobre as pérfidas mentiras publicadas nas redes sociais.
- No entanto, o EUdisinfoLAB, a mais proeminente de uma profusão de pseudo-ONG lançadas pela Alphabet em colaboração com outros interesses, revelou ser capaz de produzir a mais espetacular operação contemporânea de desinformação em solo europeu que eu já vi a fim de proteger desígnios inconfessáveis. Não se tratou de mentiras triviais, nem de animar os partidários com alguma propaganda, mas antes de uma operação sofisticada de desinformação destinada a convencer as autoridades e a imprensa de falsidades com verosimilhança e grande impacto.
- A presente tragédia desinformativa de coronapânico é já um produto acabado deste quadro que está em vigor e que só poderá vir a piorar com iniciativas como esta lei que oficializa o poder censório montado por esses interesses e oferece o dinheiro dos contribuintes para o subvencionar.
- Os detentores destes ‘alvarás da verdade’ (expressão que tomo de Manuel Soares, Público, 2 de junho) incluem já e tenderão a incluir cada vez mais, os propagadores da mentira orientada por interesses e, acima de tudo, destruirão o alicerce do que é a sociedade livre.
O quadro legislativo a preservar e a desenvolver
Revogar a presente lei e abrir um período de debate público com o objectivo de encontrar a melhor forma de estender a defesa da liberdade de expressão e de informação ao ciberespaço parece-me ser o primeiro passo a dar.
Os problemas fundamentais não estão no ciberespaço, estão no sistema judicial – que terá sempre de supervisionar não interessa qual construção política que venha a ser adoptada – e naturalmente também no sistema político, que por exemplo, levou a que uma lei como a 27/2021 fosse aprovada sem votos contra e promulgada pelo Presidente da República sem quaisquer sobressaltos.
A esmagadora maioria da matéria tratada por leis como esta – e como muito acertadamente diz o parecer do Conselho Superior do Ministério Público – limita-se a repetir, mal, princípios constitucionais ou em quadros legais claros, introduzindo incerteza jurídica (poluição legislativa, diria eu) e não tem de ser tratada especificamente neste domínio.
A meu ver, seria de todo em todo útil que o espaço informativo não considerado como comunicação social fosse coberto pela actual ERC, com as necessárias adaptações.
A ERC, que naturalmente como qualquer outra instituição pode ser melhorada na sua concepção e funcionamento, parece-me sem dúvida mais capaz do que qualquer outra que eu conheça em Portugal em matéria de luta contra a desinformação.
Em qualquer caso, grande parte do espaço informativo com impacto em Portugal não é produzido dentro das suas fronteiras, nem sequer necessariamente no espaço europeu, pelo que é indispensável pensar em modelos alternativos para lidar com os eventuais problemas que aconteçam no seu âmbito.
O primeiro cuidado a ter aqui presente é não convidar a raposa para saber como se protegem as galinhas, ou seja, assegurar que as principais empresas que controlam a informação mundial não vão ser encarregues de controlar eventuais excessos aí cometidos, o que é precisamente o que se faz com esta lei 27/2021.