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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

A “linguagem corporal da arguida” durante o interrogatório judicial e o jornalismo do “ver para crer”.

Estrela Serrano
Estrela Serranohttps://vaievem.wordpress.com/
Professora de Jornalismo e Comunicação

No programa Expresso da Meia-Noite da passada sexta-feira, dedicado à Operação Marquês, uma das jornalistas da SIC responsável pela divulgação dos interrogatórios judiciais usou o exemplo da pergunta do procurador à mulher de Carlos Santos Silva (CSS), arguida no processo, sobre o motivo que levou o marido a comprar um grande número de livros de José Sócrates, ao que ela respondeu que foi “para agradar ao amigo”.Segundo a jornalista, não basta ler a resposta da arguida, é preciso ver a sua “linguagem corporal, muito expressiva” e “o tom de voz” e por isso é “importante mostrar estes interrogatórios”. “Era preciso vê-la (à mulher de CSS) ali… para perceber que a ligação entre José Sócrates e CSS que não era muito bem vista pela mulher deste”, disse a jornalista da SIC.

A divulgação dos interrogatórios já foi condenada por todas as autoridades judiciais que se pronunciaram sobre o caso. Porém, do lado do jornalismo não se ouviram argumentos pró ou contra a divulgação, para além do já estafado “interesse público” nunca aprofundado nem justificado. E, no entanto, é importante reflectir sobre o que significa a divulgação de interrogatórios judiciais. Nada melhor do que saber o que pensam sobre isso os jornalistas, em particular, os que assumiram a responsabilidade da divulgação de material proibido.

Se o argumento da jornalista da SIC passar a valer como bom, para acreditarmos nas noticias teremos de “ver para crer”, como  S. Tomé. Se aplicarmos esse princípio à informação em geral, os próprios jornalistas não estão em condições de apreender o significado do que relatam, sem verem e ouvirem presencialmente a “linguagem corporal” e o “tom de voz” dos protagonistas.

O argumento da jornalista seria apenas caricato se não revelasse algo mais grave e profundo que consiste na confusão entre o papel do jornalismo e o das autoridades judiciais. Não cabe ao jornalista provar a “verdade” ou “inverdade” de declarações de arguidos em interrogatórios judiciais. Esse é o papel do juiz para o qual a “verdade” é aquela que é provada em tribunal e não aquela que resulta do “tom de voz” e da “linguagem corporal” dos arguidos em interrogatórios.

Só uma deficiente compreensão do que é o jornalismo pode justificar que jornalistas de prestígio usem peças processuais construídas segundo as regras e a lógica do sistema judicial (como sejam as perguntas dos procuradores aos arguidos) como se fossem peças resultantes de investigação jornalística. O facto de pegarem nessas peças e as “remontarem” segundo o sentido que pretendem atribuir-lhe constitui uma mistificação e uma violação de regras éticas e deontológicas.

Não interessa para o efeito saber se os arguidos são culpados dos crimes de que estão acusados. Para isso existem os tribunais. Sejam quem forem os responsáveis pela divulgação dos interrogatórios eles desprestigiam o jornalismo e a justiça. Custa até a crer que algum membro da equipa de investigação – procuradores e investigadores policiais – tenha colaborado na divulgação, não apenas pelo crime que ela representa mas também porque as perguntas e a abordagem feita aos arguidos é de uma pobreza confrangedora assemelhando-se  em alguns momentos a “conversa de chacha”.

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