Em fim de ano e em jeito de balanço, apesar das guerras e da crise política nacional, recordo a agitação que varreu o sector financeiro (particularmente o norte-americano), e a notícia do início de Maio que, confirmando que o banco norte-americano JP Morgan ia comprar activos do First Republic Bank reacendia a questão da real situação dos sistemas financeiros, e me levou a reler uma análise escrita por Michael Hudson por alturas da falência do Silicon Valley Bank, num artigo a que aludi aqui no TORNADO e que pensei agora detalhar melhor.
Porém, talvez seja mais correcto (e honesto) deixar falar o autor de obras como «J is For Junk Economics» e «Killing the Host – How Financial Parasites and Debt Bondage Destroy the Global Economy» – onde expõe como os sectores financeiro, dos seguros e imobiliário (o grupo FIRE, sigla inglesa para “finance”, “insurance” e “real estate”) ganharam o controlo da economia global à custa do capitalismo industrial e dos governos que lhes asseguraram um estatuto fiscal favorecido que inflaciona os preços imobiliários enquanto deflaciona a economia “real” do trabalho e da produção, como os resgates salvaram os bancos mas não as economias e como as políticas de austeridade desviam riqueza e rendimento para o sector financeiro, enquanto empobrecem a classe média – e limitar-me a continuar a traduzir o referido artigo:
A Mecânica do Mercado de Títulos e o seu Impacto na Crise Bancária
Por Michael Hudson – 15 de Março de 2023
Como o imediatismo do SVB falhou a perceber para onde caminha o sector financeiro
Durante os anos de baixas taxas de juros, o sistema bancário dos Estados Unidos descobriu que o seu poder de monopólio era muito forte. Ele só tinha que pagar aos depositantes 0,1 ou 0,2% sobre os depósitos. Isso era tudo o que o Tesouro pagava nos seus títulos do Tesouro de curto prazo sem risco. Assim, os depositantes tinham poucas alternativas, mas os bancos cobravam taxas muito mais altas pelos seus empréstimos, hipotecas e cartões de crédito. E quando a crise da Covid estourou em 2020, as empresas adiaram novos investimentos e inundaram os bancos com o dinheiro que não investiam.
Os bancos conseguiram obter ganhos de arbitragem – obtendo taxas de investimentos mais altas do que pagavam pelos depósitos – se comprassem títulos de prazo mais longo. O SVB comprou títulos do Tesouro de longo prazo. A margem não era grande – menos de 2 pontos percentuais. Mas era o único “dinheiro grátis” e seguro disponível.
No ano passado, o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, anunciou que o banco central aumentaria as taxas de juros para desacelerar o crescimento salarial que se desenvolveu à medida que a economia começou a recuperar. Isso levou a maioria dos investidores a perceber que as taxas de juros mais altas reduziriam o preço dos títulos – mais acentuadamente para os títulos de prazo mais longo. A maioria dos gestores de carteiras evitou tais quedas de preços transferindo o seu dinheiro para títulos do Tesouro de curto prazo ou fundos do mercado monetário, enquanto os preços dos imóveis, títulos e acções caíram.
“Por alguma razão, o SVB não fez esse movimento óbvio. Eles mantiveram os seus activos concentrados em títulos do Tesouro de longo prazo e títulos similares. Enquanto o banco não tivesse saques líquidos de depósitos, não precisava reportar essa queda no valor de mercado de seus activos.”
No entanto, ele ficou pendurado quando o Sr. Powell anunciou que não havia trabalhadores americanos desempregados em número suficiente para conter os seus ganhos salariais e planeou aumentar as taxas de juros ainda mais do que se esperava. Ele disse que uma recessão séria era necessária para manter os salários suficiente baixos para garantir os lucros altos das empresas americanas e, portanto, o preço das suas acções.
Isso reverteu o Quantitative Easing do resgate de Obama, que aumentava constantemente os preços dos activos imobiliários, das acções e dos títulos. Mas o Fed encurralou-se: se restaurar a era das taxas de juros “normais”, isso reverterá o aumento de 15 anos de ganhos nos preços dos activos para o sector FIRE (Nota: acrónimo de Finance, Insurance, e Real Estate, os sectores financeiro, de seguros e imobiliário).
Essa mudança repentina em 11 e 12 de Março deixou o SVB “sentado num prejuízo não contabilizado de quase 163 mil milhões de dólares – mais do que a sua base de acções. As saídas de depósitos começaram a cristalizar isso numa perda realizada.” O SVB não estava sozinho. Bancos por todo o país estavam a perder depósitos.
Esta não foi uma “corrida aos bancos” resultante de temores de insolvência. Foi porque os bancos eram monopólios suficientemente fortes para conseguirem evitar a repartição dos seus crescentes ganhos com os depositantes. Eles estavam a obter lucros crescentes com as taxas que cobravam dos tomadores de empréstimos e as taxas geradas pelos seus investimentos enquanto continuaram a pagar aos depositantes apenas cerca de 0,2%.
O Tesouro dos EUA estava a pagar muito mais e, na quinta-feira, 11 de Março, os títulos do Tesouro a 2 anos estavam a render quase 5%. A diferença cada vez maior entre o que os investidores podiam ganhar comprando títulos do Tesouro sem risco e a ninharia com que os bancos remuneravam os seus depósitos levou os depositantes mais abastados a sacar o seu dinheiro para obter um retorno de mercado mais justo noutro lugar.
Seria errado pensar nisso como uma “corrida aos bancos” – muito menos como um pânico. Os depositantes não eram irracionais nem estavam sujeitos à “loucura das multidões” ao levantar o seu dinheiro. Os bancos eram simplesmente muito egoístas e à medida que os seus clientes sacavam os seus depósitos, eles tinham que vender as suas carteiras de títulos – incluindo os títulos de longo prazo detidos pelo SVB.
Tudo isso faz parte do desenrolar dos resgates bancários de Obama e da flexibilização quantitativa. O resultado da tentativa de retornar aos níveis históricos mais normais das taxas de juros é que, em 14 de Março, a agência de classificação Moody’s cortou a perspectiva do sistema bancário dos EUA de estável para negativa, citando o “ambiente operacional em rápida mudança”. Eles referem-se à queda na capacidade das reservas bancárias para cobrir o que deviam aos seus depositantes, que sacavam o seu dinheiro e obrigavam os bancos a vender títulos com prejuízo.
A seguir veremos como Michael Hudson retrata as ligações políticas e as perspectivas para o sector financeiro.
A mecânica dos mercados | A crise ainda não acabou