Em fim de ano e em jeito de balanço, apesar das guerras e da crise política nacional, recordo a agitação que varreu o sector financeiro (particularmente o norte-americano), e a notícia do início de Maio que, confirmando que o banco norte-americano JP Morgan ia comprar activos do First Republic Bank reacendia a questão da real situação dos sistemas financeiros, e me levou a reler uma análise escrita por Michael Hudson por alturas da falência do Silicon Valley Bank, num artigo a que aludi aqui no TORNADO e que pensei agora detalhar melhor.
Porém, talvez seja mais correcto (e honesto) deixar falar o autor de obras como «J is For Junk Economics» e «Killing the Host – How Financial Parasites and Debt Bondage Destroy the Global Economy» – onde expõe como os sectores financeiro, dos seguros e imobiliário (o grupo FIRE, sigla inglesa para “finance”, “insurance” e “real estate”) ganharam o controlo da economia global à custa do capitalismo industrial e dos governos que lhes asseguraram um estatuto fiscal favorecido que inflaciona os preços imobiliários enquanto deflaciona a economia “real” do trabalho e da produção, como os resgates salvaram os bancos mas não as economias e como as políticas de austeridade desviam riqueza e rendimento para o sector financeiro, enquanto empobrecem a classe média – e limitar-me a concluir a tradução do referido artigo:
A Mecânica do Mercado de Títulos e o seu Impacto na Crise Bancária
Por Michael Hudson – 15 de Março de 2023
O Fed assusta-se e reverte as taxas de juros
Em 14 de Março, os preços das acções e títulos dispararam. Os especuladores fizeram uma matança ao ver que o plano do governo é o de sempre: chutar o problema dos bancos para o futuro, inundar a economia com resgates (para os banqueiros, não para devedores estudantis) até ao dia das eleições em Novembro de 2024.
A grande questão é, portanto, se as taxas de juros podem voltar a um “normal” histórico sem transformar todo o sistema bancário em algo como o SVB. Se o Fed realmente aumentar as taxas de juros de volta aos níveis normais para desacelerar o crescimento dos salários, deve haver um colapso financeiro. Para evitar isso, o Fed deve criar um fluxo exponencialmente crescente de flexibilização quantitativa.
O problema subjacente é que a dívida com juros cresce exponencialmente, mas a economia segue uma curva em S e depois desce. E quando a economia desacelera – ou é deliberadamente desacelerada quando os salários do trabalho tendem a acompanhar a inflação de preços causada pelos preços monopolistas e pelas sanções anti-russas dos EUA que aumentam os preços da energia e dos alimentos, a magnitude das reivindicações financeiras na economia excede a capacidade de pagar.
Essa é a verdadeira crise financeira que a economia enfrenta e que vai além dos bancos. Toda a economia está sobrecarregada com a deflação da dívida, mesmo diante da inflação dos preços dos activos apoiada pelo Federal Reserve. Portanto, a grande questão – literalmente o “resultado final” – é como o Fed pode manobrar para sair do canto de flexibilização quantitativa de juros baixos em que converteu a economia dos EUA? Quanto mais tempo e qualquer que seja o partido no poder continue a evitar que os investidores do sector FIRE sofram perdas, mais violenta deve ser a resolução final.
Assim se conclui a leitura da situação do sector financeiro, que Michael Hudson nos transmite, à luz dos mais recentes acontecimentos. Talvez um pouco extensa, mas indispensável para quem queira perceber o que realmente acontece à nossa volta e como, com o tempo, os sectores produtivos da economia foram sendo capturados pelos interesses financeiros.
Esta é precisamente a questão que o autor há muito tempo aborda e que já no prefácio ao seu livro «J is For Junk Economics» (publicado em 2017) introduzia como uma retrospectiva à crise global de 2008 que:
- viu os governos dos países ocidentais salvarem os bancos e os detentores de obrigações, e não as respectivas economias nacionais, gastando biliões em resgates e “flexibilização quantitativa” para salvar os grandes credores e os especuladores a expensas da degradação das infra-estruturas públicas e privadas, dos salário e pensões, a par com o aumento da pressão para reduzir a Segurança Social;
- serviu de pretexto para acelerar o processo de redistribuição do rendimento e da riqueza em benefício dos mais ricos e numa clara reversão das políticas defendidas pelos economistas clássicos do século XIX;
- serviu de pretexto para usar a austeridade resultante como desculpa para privatizar os activos públicos e os recursos naturais que deviam servir de base tributária para a administração das funções públicas e de pretexto para forçar os governos a vender infra-estruturas públicas para pagar aos credores;
- as infra-estruturas públicas estão a ser usadas pelos novos proprietários para cobrarem taxas de monopólio, o que resulta na perda de serviços básicos acessíveis e empobrece ainda mais as populações.
Denunciando a situação em que a coberto do discurso hipócrita da economia do lazer e da abundância, as elites financeiras (e quem as serve) têm promovido um processo de endividamento como forma de concentrarem a riqueza através da inflação dos preços dos activos, enquanto os salários e os lucros económicos estão a ser esgotados num fluxo de pagamentos de juros que cresce exponencialmente, Michael Hudson defende a necessidade de reconstruir a economia como disciplina e assim recuperar o processo de análise e de elaboração de políticas económicas mais baseadas na realidade e ao serviço dos cidadãos.
A mecânica dos mercados | A crise ainda não acabou