… cujo número se calcula que ultrapasse o meio milhão!, celebrados com trabalhadores individuais ou até com pequenas sociedades unipessoais ou por quotas constituídas precisamente para o efeito; os contratos à “comissão” ou de “agência”; ou mais recentemente os contratos típicos da “uberização”, feitos com plataformas digitais e tão falsa quanto pomposamente denominados de “parceria” ou de “partilha”.
Em tais contratos, os trabalhadores têm de prestar trabalho no local e com meios definidos pela empresa beneficiária, têm de cumprir horários (as mais das vezes muito superiores aos mínimos legais, chegando facilmente às 12 e mais horas por dia), seguem as regras (inclusive de vestuário, de apresentação e de contacto) e os procedimentos ditados pela mesma empresa beneficiária, recebem periodicamente uma remuneração (frequentemente em absoluto miserável) como contrapartida da actividade que prestam, têm de prestar contas e justificar as respectivas ausências perante um controlador ou supervisor da empresa. Porém, sob a capa de que não se trata de um contrato de trabalho, esta não paga TSU, não paga seguro de acidentes de trabalho, não paga remunerações mínimas nem horas extraordinárias, não tem que assegurar qualquer formação e arroga-se o direito de, a qualquer momento, fazer cessar o vínculo (“prescindir dos serviços”, “desligar” ou “desconectar” o trabalhador…) sem necessidade de qualquer procedimento formal ou pagamento de qualquer indemnização!
Falsos estágios
É certo que desde 2009 o Código do Trabalho contém, no seu artigo 12º, uma presunção de laboralidade ou de contrato de trabalho, nos termos da qual desde que o trabalhador prove alguns (dois?) dos elementos ali previstos (propriedade do local de prestação do trabalho, bem como dos instrumentos de trabalho, cumprimento de horário, remuneração regular, etc.) se passa a presumir a existência de um contrato de trabalho, competindo então ao beneficiário da actividade provar o oposto.
Como é verdade que os artigos 186º-K a 186º-R do Código de Processo do Trabalho, na sequência da Lei nº 107/2007, de 14/9, passaram a prever e regular especificamente um tipo de acção judicial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, intentada pelo Ministério Público após participação da Autoridade para as Condições do Trabalho – ACT de uma situação de aparente contrato de trabalho não regularizada, no prazo fixado, pela respectiva entidade beneficiária.
Mas o facto é que tais soluções legais se mostram manifestamente insuficientes para fazer face a um fenómeno que é um autêntico escândalo nacional de verdadeira escravatura. E isto por toda uma série de factores que vão desde a actual quase completa inactividade da ACT, em particular na área inspectiva, e a deficiente regulamentação de vários aspectos da dita acção, até à mais que compreensível dificuldade de obtenção de prova, designadamente testemunhal, neste tipo de acções, ao valor brutal das custas judiciais, e a absurdas concepções jurisprudenciais como a hoje praticamente unânime teoria da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça de que a referida presunção legal só se aplicaria aos contratos de trabalho celebrados após a entrada em vigor do Código de Trabalho, atirando o ónus da prova da existência de subordinação jurídica e, logo, do contrato de trabalho para cima do próprio trabalhador em todos os restantes casos.
Escândalo nacional e impune fraude
Estamos, repito, perante um autêntico escândalo nacional, de arrogante e impune fraude à lei e de verdadeira escravatura, que representará cerca de um milhão e duzentos mil trabalhadores a trabalharem diariamente sem saber se no dia seguinte ainda têm com que dar de comer aos filhos e sob condições, de salários, de horários, de riscos, de custos e de falta de condições de segurança e saúde mais próprias do final do século XIX. A que nenhum dos governos que temos tido tem querido fazer frente de forma consequente (não obstante o buraco nas contribuições para a Segurança Social e a destruição dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores que ele representa) exactamente por não querer hostilizar o mundo patronal, por defenderem essa atoarda, justificadora de tudo, de que “mais vale um mau emprego do que nenhum emprego” e por entenderem que é com “chineses da Europa” que Portugal alguma vez se tornaria um país desenvolvido e progressivo.
É, porém, claro que há medidas que podiam e deviam ser tomadas mas que, desde logo e do ponto de vista político-legislativo, deveriam passar pela gratuitidade da Justiça Laboral, pela efectiva reactivação da acção inspectiva da ACT, pela punição, inclusive criminal, dos actos de retaliação contra quem ouse testemunhar em prol da verdade, e, sobretudo, pela retirada à fraude das actuais “vantagens competitivas”, estendendo o essencial da tutela protectiva do Direito do Trabalho e da Segurança Social (designadamente em matéria da mesma Segurança Social e respectivas contribuições e prestações, de formação, de asseguramento das condições de segurança e saúde no trabalho, de remunerações mínimas e de horários máximos e de protecção contra rescisões arbitrárias) às relações de actividades similares ou próximas das relações laborais clássicas, ou seja, às relações do chamado “trabalho para-subordinado”.
Mas para isso era preciso querer, mesmo, afrontar a fraude e a escravidão e defender quem trabalha!
Nota de edição
A primeira parte deste artigo, dedicada ao tema da Contratação precária, foi publicada ontem, dia 17 de Novembro.