Na mitologia grega, Caos foi o deus primordial a surgir no universo, portanto a mais velha das formas de consciência humana. O poeta romano Ovídio foi o primeiro a atribuir a noção de desordem e confusão à divindade Caos.
Sendo o conceito de caos tão antigo, o facto estranho é a dificuldade que nós, pelo menos os de cultura de raiz grega e romana, temos em lidar com ele. Na realidade a ideologia dominante (a dos dominantes) impôs-nos (aos dominados) o princípio da casualidade, aquela que nos leva a aceitar sem crítica que não existe efeito sem causa, de que causas iguais têm sempre efeitos iguais. Querem que pensemos linearmente, bovinamente.
A abordagem linear da realidade é apenas a conveniente aos beneficiários de uma certa ordem, da sua ordem. A realidade foi sempre caótica e continua a ser. Aquilo que hoje os meios de comunicação e de manipulação de ideologias designam como “análise política”, ou “comentário” de que os exemplos mais significativos em Portugal foram os programas de comentário de Marcelo Rebelo de Sousa e são atualmente os de Marques Mendes constituem entorpecentes deturpações da análise da realidade. O que é anti-natural e anti histórico é a ordem. Esta inversão de perspectiva que as classes dominantes têm feito através dos seus pregadores teve um primeiro núcleo de agentes constituídos pelas religiões monoteístas e, modernamente, assenta na novidade que os cientistas da área das ciências exatas espalharam pelo mundo, desde o Renascimento, de que o surpreendente não é a existência do caos (do velho e primordial caos), mas a existência das regras. O Poder assenta na ordem e esta nas regras.
Os analistas políticos utilizados no mercado de opinião de grande consumo, populistas e demagogos independentemente da sua formatação teórica, ditos cientistas sociais para efeitos de credibilização, politólogos, comentadores, pastores evangélicos, juristas, assustam os consumidores de hoje com o caos em nome da perda da exatidão autoconstruída que jamais existiu. (As sociedades humanas não são cristalizações predeterminadas. Não são Legos. E as Tábuas com os 10 Mandamentos foram uma tentativa falhada de ordenar o caos – as pragas continuaram a desafiar a ordem, dos massacres à ambição e à inveja. Para já não falar do amor à mulher do próximo.) As Tábuas da Ordem, como o código do Hamurabi representam a derrota de uma velha ordem que nunca correspondeu à realidade da história das nossas sociedades.
Os pastores televisivos falam dos bons velhos tempos. (Quando?) Afirmam que só agora é que isto que acontece, acontece, desde a corrupção para obter vantagens nos negócios ao nepotismo, dos subornos às promessas não cumpridas, dos luxos dos cortesãos, dos privilégios das corporações, do assédio sexual à injusta distribuição da riqueza…
Vivemos num caos! É essa a mensagem que os doutrinadores da velha ordem se esforçam por transmitir ao rebanho. Querendo apagar a realidade de que fenómenos caóticos sempre existirem em abundância, mas foram ignorados pelos analistas sociais por uma razão tão perversa que o seu principal trabalho nos órgãos de comunicação é evitar explicarem que a naturalidade com que ignoramos o caos resulta da uma estratégia deliberada da chamada “sociedade do trabalho”, do capitalismo tout court, que conseguiu, no processo de sua formação, usar as causalidades descobertas de uma forma produtiva e rentável. O capitalismo alimenta-se do caos. A contabilidade, que é a matéria ensinada nas prestigiadas Business Scholl depois de devidamente nobilitada, é que assenta na ordem dos Livro Razões, do Deve e Haver.
O capitalismo, a sociedade industrial e a pós-industrial em que vivemos até há pouco, até à eleição de Trump, para encontrar uma referência (mas podia ser a da dupla Reagan/Tatcher), confirmou a derrota do velho determinismo como conceito interpretador do mundo. O determinismo parte da convicção de que conhecendo as “leis da natureza” e o estado de um sistema o desenvolvimento deste (de uma dada sociedade) se torna previsível (os mais fanáticos – economistas em geral – até o julgaram calculável) para todos os tempos.
O determinismo em que as sociedades ocidentais foram formatadas ganhou força com a mecânica de Newton, que dominou o pensamento europeu desde o século XVIII, mas ele apenas se referia e refere a alguns aspectos do mundo objectivo, hoje desajustados da realidade. (O desajuste teve o seu ponto de rutura na I Grande Guerra.) Assentava na racionalidade repetitiva da máquina (incluindo as computacionais) e orientava-se e orienta-se para o que a comunicação anglo-saxónica (dominante) refere como input e que melhor seria referida por insumo, aquilo que é introduzido no processo de produção de um produto final (output) e que tanto pode ser visto como fator de produção ou como matéria-prima. Tanto podem ser máquinas, horas de trabalho, capital, como processos para atingir uma finalidade. As afirmações de Trump, os lançamentos de foguetes do Kim Jong-un da Coreia do Norte, ou as previsões da presidente do FMI podem ser incluídas nesta categoria de insumos.
Trump, como Bolsonaro, como Xi Jiping ou Putin, enquanto atores, tanto quanto o Brexit, os jogos de estratégia na Síria, no Mar Negro, a rota da seda, o muro do México, os migrantes do Mediterrâneo, a bolsa de Wall Street, os coletes amarelos são exemplos de insumos de um processo caótico.
A reação assustada dos apóstolos ditos “cientistas sociais” e dos seus exemplares de feira que são os comentadores contratados à peça para os grandes meios de manipulação, no que diz respeito à confrontação com fenómenos caóticos, mostra que uns, os mais sérios, se deixaram influenciar pela paralisia geral de pensarem e da coragem intelectual de abordar o caos como um fenómeno normal na História e os propagandistas executam o que lhes mandam, gritar como o Pedro da história: Vem aí o lobo!
Ora, os lobos sempre andaram por aí. Temos é de aprender a viver com eles e não ser comidos, como temos sido.
Talvez volte a escrever sobre o caos, esse estado natural das sociedades…
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90