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Sábado, Dezembro 21, 2024

A nossa periferia

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Em setembro de 1978, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Alma-Ata, na República do Cazaquistão, expressava a “necessidade de ação urgente de todos os governos, de todos os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade mundial para promover a saúde de todos os povos do mundo”.

Alma-Ata definiu os conceitos de saúde que interiorizei, e comigo muitas colegas seguiram esses mesmos princípios. Decidimos abandonar as especialidades clínicas para fazer concurso e sair para a periferia do país como especialistas de Saúde Pública.

Eu e mais colegas do meu grupo tínhamos frequentado a Escola Nacional de Saúde Pública e podíamos concorrer às vagas pela primeira vez criadas por concurso nacional para sermos Delegados de Saúde. Abandonei o Serviço de Cardiologia dos Hospitais Civis, onde tinha começado a especialidade e no referido concurso fiquei em primeiro lugar para o Concelho para onde concorri: Grândola. Comigo ia o meu colega e melhor amigo, que comigo partilhava as mesmas ideias que o nosso Professor Correia de Campos, na ENSP, tanto temia. Vinha ele de terminar o doutoramento nos USA em Saúde Pública na Jonh Hopkins, sendo de base, licenciado em Direito e Jurista. De facto quando nós falávamos de alhos, ele respondia com bugalhos. Ele era gestor, nós éramos médicos.

Ele queria fazer de nós administradores hospitalares, hoje em dia seria fazer de nós empreendedores. Nós queríamos iniciar serviços de cuidados primários periféricos, nos Concelhos  para onde iríamos.

Correia de Campos lá ficou em Lisboa e nós partimos. Penso que ele nunca percebeu onde ficava a tal de periferia!

Sabíamos desde o ano de 1975, ano em que tínhamos feito o Serviço Médico à Periferia que os concelhos afastados de Lisboa tinham carências básicas terríveis. De bom, havia o Serviço de Luta Anti Tuberculosa, o velhinho SLAT onde era feito o BCG aos recém nascidos e se controlavam as tuberculoses diagnosticadas na clínica médica com auxilio do RX simples do tórax e a prova da tuberculina.

Havia médicos privados, espalhados ao acaso, por aqui e por ali, onde muito bem lhes aprouvinha. Estes clínicos não eram enquadrados nem monitorizados por nenhum serviço hospitalar e as mais das vezes ao fim de vinte anos de exercício da clínica privada sabiam pouco mais do que quando tinham saído da Universidade.

Não havia simpósios nem workshops, os delegados de propaganda médica pouco podiam vender porque a maioria da população ia ao médico nas últimas, porque dinheiro não tinha. A miséria em que o regime fascista deixara a população era uma evidência a que não podíamos fechar os olhos, porque de facto os olhos nos ficavam arregalados pelos extremos em que as pessoas tinham vivido durante tantos anos. A má alimentação, a falta de água potável no domicilio, as falta de instalações sanitárias, a falta de rede de esgotos mantinham a opressão da miséria e da triste vida com morte precoce.

Foi tarefa nossa, como digo, inspirada nos princípios de Alma-Ata e que a Direção Geral de Saúde também adotou que abrimos a vacinação a todas as crianças, as consultas de Saúde Infantil, de Saúde Materna, de Planeamento Familiar, e a Saúde de Adultos. Os técnicos sanitários ganharam outro relevo e uma profissão dignificada. Eram eles que nos ligavam à Câmara, às questões da água e do saneamento básico, com soluções que tínhamos aprendido com exemplos vindos de África e da América do Sul.

Nessa altura já os hospitais psiquiátricos distritais tinham um psiquiatra que fazia serviço na periferia, no caso de Grândola uma vez por semana. Passamos a conferenciar com ele sobre os casos crónicos em que era necessário vigiar a medicação e as alterações de humor (que levam muitas vezes à violência doméstica) e sobre os suicídios que eram epidémicos.

Abrimos postos do Centro de Saúde, com as mesmas valências, nas principais freguesias do Concelho. Aos serviços centrais requisitamos todo o material necessário, bem como todos os meios anticoncecionais na altura disponíveis, e que era dados aos doentes nas consultas como gratuitos.

Foi-nos entregue o pobre Hospital da Misericórdia local que era triste e mal provido e pior administrado. Remodelamos todo o funcionamento desta pequena unidade de internamento que passou a ter urgência de 24 horas e enfermaria de homens e de mulheres onde internávamos casos relativamente simples mas que não podiam ser tratados em casa. Recebíamos as vítimas de todos os acidentes de viação que eram estabilizadas por nós, antes de seguirem para Setúbal ou Lisboa.

Todo o material para o hospital foi adquirido através dos Serviços de Utilização Comum Hospitalar, a famosa SUCH. Camas, colchões, roupa, toalhas, batas, material de pequena cirurgia, tudo nos chegou, tudo o que requisitamos, recebemos, assinamos e conferimos. O mesmo para os medicamentos que deixaram de ser comprados por aqui e por ali e passaram a chegar regularmente nas quantidades que pedíamos.

Depois começaram a ser destacados médicos que vinham fazer um ano de serviço médico na nossa periferia e que eram coordenados por nós. Desses colegas tenho memórias maravilhosas. Talvez um dia as escreva aqui.

E com isto pelo país todo a mortalidade infantil começou a diminuir, a mortalidade materna também, o numero de gravidezes não desejadas caiu a pique, os abortos clandestinos deixaram de encher as urgências hospitalares. Em Grândola os suicídios quase desapareceram. A Vila era Morena e nós trabalhávamos intensamente para cumprir um conceito de cuidados básicos de saúde para todos.

Correia de Campos, continuava a dar aulas na ENSP e a tentar treinar gestores, até que chegou a Ministro.

E isso é uma tão má memória que a deixo para outro dia.

Ilustração: Saúde na Gravidez e Maternidade, de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90



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