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João de Sousa

Segunda-feira, Novembro 4, 2024

A nova ordem mundial americana

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Foi apenas na sexta-feira que me chegou o convite para a conferência da terça seguinte, dia 4 de Dezembro – intervalo anormalmente curto para anunciar algo de tão importante – mas o autor da conferência e o título contidos no convite: o Secretário de Estado norte-americano e ‘Reformar as regras da ordem internacional’ foram mais que suficientes para estar presente.

A palestra, que entretanto recebeu como novo título: ‘Restaurar o papel do Estado Nação na ordem internacional liberal’, foi de tal forma impressionante que imediatamente a coloquei no site da associação que dirijo ‘ARCHumankind’.

1. A mais importante palestra do ano em Bruxelas

E se o curto espaço de tempo com que foi anunciada e a mudança de título que sofreu indicam que os pouco mais de dezanove minutos de alocução não são a peça última de um pensamento estratégico ainda em evolução, fiquei desde logo convencido que tinha assistido a um momento histórico, aquele em que o representante diplomático da  principal potência do globo exprimiu pela primeira vez não só a convicção de que o quadro institucional do pós-segunda guerra deixou de funcionar, mas também de forma articulada as linhas de força de uma nova ordem.

Quando depois da conferência a referi a um amigo, ele respondeu-me que iria ver o resumo dado pelo ‘New York Times’. Por curiosidade, li a reportagem desse jornal e constatei que se trata de mais uma peça de desinformação que é hoje a regra da chamada ‘imprensa de referência’.

Quando Pompeo passou grande parte do tempo a enaltecer a OTAN, o articulista prefere dizer que ele se distanciou da visão de Trump que seria crítica da organização (opinião do articulista tomada como facto); quando Pompeo depois de largos elogios à União Europeia disse que era preciso dar no entanto atenção ao sinal de alarme do Brexit, o articulista, titula que ele criticou a UE; quando se registam aplausos na sala e vozes – que eu penso terem sido de apoio – à necessidade de os interesses dos cidadãos pesarem mais do que os burocratas, o articulista não só diz que ele foi contraditado mas inventa mesmo uma necessidade de Pompeo responder à suposta crítica vinda da sala.

O resto do artigo é zero de informação e 100% de preconceito, tirado aparentemente da opinião dos burocratas que Pompeo justamente criticou, sobre o que o articulista pensa – e pensa pouco e mal – sobre a ordem internacional, falhando-lhe quase toda a imensa riqueza da mensagem que ele era suposto reportar.

Longe vai o tempo em que havia uma salutar distinção entre reportagem e opinião; hoje, quando não temos manipulação paga, temos a censura feita já não pelo lápis azul, mas por alguém que pensa ser seu dever esconder a realidade do cidadão e substituí-la pela sua opinião feita de chavões e preconceitos quando não de pura ignorância.

E é por isso que os tempos correntes não dispensam o testemunho directo.

2. Uma nova filosofia da linguagem para anunciar uma nova ordem internacional

Como assinalei várias vezes, para entendermos as obras maiores de George Orwell (A quinta dos animais ou 1984), precisamos de ler o que ele escreveu sobre a decadência da língua inglesa; a sua explicação de como o eufemismo, o chavão, a construção barroca do discurso serviram de ponte ao totalitarismo.

E este é o primeiro ponto em que Pompeo rompe com a lógica discursiva dominante com uma dissertação clara, sóbria e coerente. Por outro lado, comparando-a com o do epígono do ‘populismo’, Donald Trump, vemos que onde tínhamos os pontapés na sintaxe e na gramática, os termos populares e o vocabulário simplista, temos aqui algo de consistente, simples e efectivo; em dezanove minutos disse mais que horas e horas de discursos políticos tradicionais.

O discurso foi claramente americano; começando com a elegia de George HW Bush aos comandos de um avião de combate na segunda guerra mundial, fazendo a ponte para a substância com os incontornáveis gracejos americanos (os EUA, único país que George HW Bush amava mais do que o Texas, gracejo que levou ao riso geral da sala) foi centrado no papel histórico, actual e potencial dos Estados Unidos como principal potência do mundo.

Referiu sem perder tempo os sucessos da ordem internacional americana do pós-guerra, que apelidou de reconstrução da civilização, enaltecendo em particular o papel do seu antecessor George Marshall, que deu o nome à Fundação que ele escolheu para patrocinar a sua palestra (o Fundo George Marshall dos EUA); a reconstrução da Europa e do Japão; e a criação da arquitectura institucional internacional, para passar ao prato forte; a OTAN, que ele enalteceu mais do que qualquer outra instituição como pilar da defesa da liberdade, do progresso e dos direitos humanos; dos valores ocidentais.

Os elogios à OTAN – e algumas notícias que ele deu sobre ela – compreendem-se naturalmente pelo facto de ele estar em Bruxelas no contexto de uma reunião de chefes das diplomacias dos membros da OTAN, mas também, como iremos ver, por esta organização ser o exemplo maior da arquitectura de geometria variável que ele aponta como modelo para o multilateralismo que ele propõe.  

Pompeo disse que os EUA ganharam a guerra fria, e unificaram a Alemanha, num exemplo de liderança que anima hoje o Presidente Trump. Lançou depois a ‘primeira bomba’ do discurso: depois do fim da guerra fria os EUA deixaram que a ordem internacional se corroesse, com o multilateralismo a tornar-se num fim em si mesmo; ‘quanto mais tratados assinamos, quanto mais burocratas contratamos, mais pensamos que assim atingimos os objectivos’. (síntese minha)

Para Pompeo, a questão central é que o ‘sistema’ tal como ele existe não funciona para todo o povo que ele é suposto representar. Falou das missões de paz da ONU que duram há décadas sem trazer qualquer paz; dos tratados sobre o clima que servem para transferir recursos mas não dão frutos, ou do antissemitismo crescente; de Cuba e Venezuela no conselho dos direitos humanos; a constatação do falhanço das Nações Unidas em prevenir a escalada do armamento; o falhanço de organizações regionais americanas e africanas e terminou com uma devastadora crítica à falta de desenvolvimento e austeridade trazidas pelo FMI e pelo Banco Mundial.

Elogiou depois a União Europeia, não sem terminar com a questão de saber se esta vai dar mais atenção ao seu povo do que aos burocratas que a dirigem, usando o mesmo tom que tinha usado para criticar as instituições das Nações Unidas.

De seguida assumiu que a ascensão mundial de maus personagens foi o fruto envenenado do recuo americano, que a administração Trump está apostada em inverter. O primeiro mau personagem citado foi a China cujo progresso económico não conduziu a um progresso político, mas a mais repressão interna e expansão externa; o segundo foi o Irão, de que focou o programa nuclear e o apoio ao terrorismo e o terceiro foi a Rússia de que citou o expansionismo e a violação dos tratados internacionais em matéria de armas químicas e nucleares.

À nova estratégia, designada pelos estrategas americanos como realismo fundado em princípios, ele prefere dar o nome de ‘senso comum’ traduzido na obrigação dos responsáveis de todas as nações de respeitar os interesses dos seus povos. Ver o mundo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse, um mundo centrado no Estado Nação, com a obrigação de zelarmos pelo cumprimento de regras; sendo que quando esquecermos a necessidade de cumprir as regras, outros aproveitarão a oportunidade.

Contrariamente ao que diz o Irão e a China, e por vezes ‘os nossos amigos europeus’ os EUA não estão a pôr em causa a ordem internacional, estão antes a lançar as bases para uma ordem internacional livre baseada na soberania dos Estados Unidos e dos outros Estados, de que necessitamos do auxílio, uma ordem internacional que sirva os cidadãos e não sirva para os controlar.

Quando os tratados não são cumpridos, os seus violadores devem ser chamados às suas responsabilidades, e os tratados devem ser consertados ou abandonados.

Pompeo diz que o acordo de Paris sobre o clima transferia recursos dos EUA para outros países como a China, mas – numa das mais marcantes surpresas – reivindicou para os EUA o sucesso da diminuição das emissões de gases com efeitos de estufa na base da inovação.

Falou da necessidade de confrontar o terrorismo e expansionismo iraniano com base numa coligação o mais vasta possível, falou da reforma do NAFTA e anunciou a necessidade de reformar a OMC, o FMI e o Banco Mundial, e mostrou-se disposto a tomar todas as medidas necessárias para impedir que o Tribunal Penal Internacional vise soldados americanos no Afeganistão.

Passou depois ao exemplo das instituições multilaterais que considerou positivas, como o acordo bancário SWIFT, a Iniciativa de Segurança contra a proliferação e, fundamentalmente, a OTAN. 

3. O que há a reter da proclamação

A ordem internacional anunciada assenta no pragmatismo e no realismo, inclusivamente linguístico; distancia-se das construções metafísicas onde pressente esconderem-se os maus da fita e assume os valores liberais ou ocidentais.

Tratou-se da primeira vez em que os EUA assumiram o facto de terem perdido o pós guerra-fria, deixando que países que querem pôr em causa a ordem internacional se tornassem cada vez mais dominantes.

Afirmou a vontade americana de não tolerar ou premiar o desrespeito dos tratados internacionais e apostar num novo multilateralismo feito de geometria variável e de respeito pela soberania dos seus membros.  

Perante um Ocidente que assumiu resignadamente ou por vezes psicoticamente o seu ocaso, deixando que os valores e os protagonistas totalitários ocupassem o seu lugar, ele mostrou uns EUA dispostos a lutar pelos valores que fizeram a nação americana.

Creio que se tratou da tomada de posição que prenuncia a possibilidade de invertermos o rumo de naufrágio total da ordem política ‘liberal’ em que vivemos.

Posto isto, penso que há vários pontos que merecem um debate profundo.

  • Se é salutar ver os EUA assumir as suas responsabilidades, seria pouco sensato esquecer as razões objectivas que nos levam a ver a recentragem do mundo no ‘Indo-Pacífico’. Para quem quer que tenha uma noção do que é o Japão, a Coreia do Sul ou Taiwan nos nossos dias, parecerá mesmo bizarra a designação de ‘valores ocidentais’ pois na verdade eles se cimentam mais lá do que entre nós.

Se é verdade que se não forem os EUA hoje e agora a liderar uma coligação pela defesa dos valores antitotalitários, ninguém mais o fará, não está escrito em lado nenhum que esse papel de liderança lhe caiba para sempre.

  • O caso contra a China, que se aproveitaria das regras sem as respeitar, está exagerado e já algo ultrapassado no tempo. Na verdade, os EUA, a Alemanha ou o Japão fizeram a sua ascensão no sistema mundial com práticas semelhantes às que foram mais recentemente desenvolvidas pela China, e a questão é que pouco adianta chorar sobre isso agora, porque na maior parte dos domínios, a China já chegou ao lugar cimeiro.

Da mesma maneira que foi uma tontice supor que o crescimento económico iria necessariamente fazer da China uma democracia, outra tontice semelhante será pensar que ela está necessariamente condenada a materializar Huxley ou Orwell.

O risco de isso acontecer é grande, e sem liderança americana, será maior ainda, mas não podemos nem devemos fechar as portas a outros cenários e a outras políticas, que carecem de ser desenvolvidos.

  • A fórmula do ‘Estado Nação’ como necessariamente popular e da construção internacional como necessariamente burocrática está também ela grandemente enviesada. É verdade que as Nações Unidas estão em roda livre, e que as instituições europeias estão cada vez mais fossilizadas, mas se Pompeo olhar para a enorme burocracia que tem a cargo – o Departamento de Estado – penso que vai ver problemas semelhantes aos que acertadamente diagnosticou nos dois outros exemplos.

A fórmula ‘respeito pelos Estados’ a todo o custo é de resto a principal bandeira dos comunistas chineses, e é utilizada para esquecer legítimas aspirações de povos subjugados, como os baluques, ou dentro de portas, tibetanos ou uigures e para ganhar contratos subornando as elites dos ‘Estados’.

  • Pompeo identificou bem a corrosão da ordem internacional no pós guerra-fria, mas não lhe ocorreu algo de essencial: que isso se pudesse dever ao ‘consenso de Washington’ que alguns denominam de ‘neoliberalismo’ e que se traduz na ideia simples de que só interessa o dinheiro.

É por ter perdido as referências do seu sistema de valores e o ter substituído pela pura vontade de fazer dinheiro que o Ocidente se foi rendendo à vontade de Teerão, de Beijing ou Moscovo. É este um ponto essencial do que destruiu a ordem internacional liberal.

  • Pompeo entendeu claramente o perigo colocado pela Teocracia e parece entender também melhor do que ninguém a necessidade de lhe fazer face. Mas isto, sendo o melhor que há no mundo, precisa ainda de ser bastante trabalhado, nomeadamente, no quadro interno iraniano e no quadro regional, a começar pelo Iraque e Afeganistão.  
  • Pompeo corrigiu o tiro em matéria de emissões atmosféricas, mas aqui penso que não foi ao essencial.

O seu instinto diz-lhe, e bem, que o tratado de Paris supõe a consolidação de uma burocracia infernal desperdiçando recursos; um sistema de faz de conta, critérios ultrapassados de países desenvolvidos e não desenvolvidos, e que não fala da única coisa que interessa falar: das novas tecnologias.

Mas o que é preciso ter em conta é que as emissões atmosféricas não podem ser tratadas e entendidas fora do contexto ambiental e social que as dita, e que elas são tão pouco o alfa e o ómega dos desafios ambientais que temos pela frente.

  • A generalidade da esquerda naufragou primeiro no pesadelo comunista e mais contemporaneamente no inferno fascista jihadista, no fascismo tropical pseudorrevolucionário ou nos modelos totalitários de correcção social.

A esquerda que se queira afirmar como tal, tem de entender primeiro os pontos em que Pompeo tem toda a razão, para então pensar em alternativas baseadas no que há de melhor no mundo que temos entre mãos que, apesar de tudo, é o que foi feito sob a liderança norte-americana, como nos disse Pompeo.

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