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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

A OMS é política, não é científica

João Vasconcelos Costa
João Vasconcelos Costa
Investigador e professor universitário (Virologia Molecular), depois dirigente de um instituto de investigação, ensino e cooperação, hoje reformado.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem sido tida como aval em diversas iniciativas legislativas ou regulamentares no domínio das “medicinas” alternativas (MA) ou, na fórmula oficial, terapias não convencionais. (Abro parênteses para fazer notar que, evitando o conflito com a Ordem dos Médicos que seria falar de medicina alternativa, escamoteia-se, com o termo terapia, que se trata da totalidade de um processo que envolve diagnóstico e compreensão da etiologia e patologia, mais do que terapia).

Esta invocação da OMS não é correta, total ou parcialmente, por várias ordens de razão. Em primeiro lugar, nunca a OMS avalizou as MA nem lhes comprovou idoneidade científica ou eficácia indiscutível. O que tem dito, repetidamente, é que elas são um património tradicional que merece investigação e proteção, no sentido de poderem compensar a falta de recursos médicos convencionais em largas áreas do globo. Não inclui charlatanices inventadas há relativamente pouco tempo, como a homeopatia, a quiropráxia ou a osteopatia.

Declarando-se a favor da “qualificação, acreditação e licenciamento dos profissionais” (Declaração de Pequim de 2008), a OMS refere-se estritamente às medicinas tradicionais e não ao largo espetro de MA, como o que é reconhecido legalmente em Portugal.

Mesmo em relação à muito difundida acupuntura, e com a pressão política da China, a OMS não se compromete muito. Reconhece, numa declaração de 2003, que a acupuntura pode ser usada em algumas situações, principalmente de dor, e que é uma perspetiva terapêutica promissora embora não haja uma base de estudos clínicos com controlos apropriados.

Muito menos a OMS se limita a referir a medicina tradicional chinesa. Enquadra sempre a questão no problema geral da saúde de todos os povos de recursos limitados e valoriza o acervo de conhecimentos tradicionais de muitas culturas, asiáticas, africanas, ameríndias e até europeias. Aliás, para quem viveu a década de 60, o caso mais célebre de recurso a medicinas tradicionais, mas em complemento dos meios disponíveis da medicina de base científica, não ocorreu na China mas sim na guerra do Vietnam, com os “médicos de pé descalço”. É certo que à semelhança do que Mao tinha feito durante a grande marcha.

Em segundo lugar, a OMS é uma organização por natureza política, embora com grande assessoria técnica. Não é justo dizer-se que pode violar o rigor técnico, mas frequentemente coloca à sua frente considerações de ordem política. Considerações muitas vezes generosas, como neste caso de percolação com a situação de populações com recursos limitado à saúde. Pode-se duvidar é de que esta perspetiva paternalista não terá consequências perversas. Uma delas, já vimos, é a abusiva legitimação de medidas políticas tomadas por países desenvolvidos, sem aqueles constrangimentos, com governos e partidos, como em Portugal, a protegerem as MA por razões meramente políticas ou de interesses económicos ou de propaganda eleitoral.

O caso recente que pode servir de base a esta dúvida é a publicação pela OMS do novo índice de classificação das doenças, o ICD-11 (que pode ser consultado no sítio web da OMS). É um sistema usado mundialmente e muito importante para normalizar estatísticas, estudos epidemiológicos ou clínicos ou até a certificação de óbitos. Fornece também a base de classificação essencial para estudos e decisões sobre política e economia da saúde.

Ao contrário das versões anteriores, até ao ICD-10, o novo inclui quadros clínicos definidos pela medicina tradicional chinesa (MTC) – também japonesa e coreana –, mas só estas, de entre todas as medicinas tradicionais. Assim, uma pessoa pode sofrer ou morrer de enfarte do miocárdio, de septicémia, de insuficiência renal, de diabetes ou de cancro da mama. Mas também da doença com código SF50 que se designa como “deficiência do yin hepático”, ou a SF57, “estagnação do qi hepático”. Ao menos fica estipulado que estas classificações não podem ser usadas para efeitos de causa de morte.

Vêm num capítulo que descreve cada doença classificada. Por exemplo, o “quadro do meridiano da bexiga” (SG26) caracteriza-se por fortes dores de cabeça, sensação de que os olhos estão a sair das órbitas, rigidez da nuca, curvatura para trás da cintura, inchaços na parte de trás do joelho, lacrimejo, congestão nasal e paralisia do dedo mínimo do pé. Este conjunto, total ou parcialmente, corresponde a diferentes quadros clínicos convencionais, desde respostas de seres a doenças graves. Nenhuma, no entanto, relacionada com a bexiga.

Essa do dedo mínimo é o máximo para um mínimo! O mal é que não se pode só rir. Tratar este quadro com agulhas ou mezinhas pode fazer esquecer, por exemplo, uma meningite fatal.

E porquê isto? Porque está a OMS a integrar – tarefa impossível por natureza, como óleo e água – ciência e crendice, mesmo que com respeito pela idade veneranda mas senil? As razões são estritamente políticas e já as resumimos acima. Acresce o ciclo vicioso: como alguns países criaram sistemas legais de reconhecimento das MA, é conveniente uma plataforma internacional de normalização; mas, por outro lado, esses países em boa parte fundamentaram-se ou invocaram a posição da OMS.

Reconheço a utilidade da codificação dos quadros clínicos e respetiva terapêutica da MTC no âmbito bem definido da investigação sobre essa prática. Para se estudar é preciso começar por se definir bem o que se estuda. Todavia, esta salgalhada do ICD-11 quer ser muito mais, quer pôr em plano de igualdade e integrar – objetivo explícito da OMS – as duas medicinas.

E porquê a medicina chinesa? Para além da razão prática de ser a mais difundida, é óbvia a outra razão, o peso da China no quadro internacional, como potência emergente, e o seu papel na ONU e suas organizações.

Irónico é que Mao, que usou a MTC durante a grande marcha para dar aos seus camaradas a ideia de estarem a ser cuidados, não acreditava na MTC, como relatado por um dos seus médicos, Li Zhisui: “Embora acredite em que devemos promover a medicina chinesa, pessoalmente não acredito nela. Não tomo produtos médicos chineses”. Não é de estranhar que esse médico de Mao tivesse sido formado numa universidade ocidental e escolhido pelo grande timoneiro.

E, entre 1950 e 1953, foi slogan do PCC “A medicina chinesa estuda a medicina ocidental”.

Nota: parte importante dos dados factuais referidos consta de “ICD.-11: a triumph of the integration of quackery and real medicine”, David Gorski, Science-Based Medicine, 19 de março de 2018.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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