O pedagogo, fundador da Escola da Ponte, que de Portugal ao Brasil derrubou paredes e edificou no mesmo espaço mais de uma centena de construções sociais de aprendizagens, deixa a sua inquietação: Muitos docentes transformaram-se numa «subcultura profissional, forjada numa pedagogia fóssil que os impelia à obediência a ‘legítimos superiores’ e os impedia de se aperceberem figurantes de uma farsa, que poderia redundar em drama»
As aulas já terminaram para todos os ciclos de ensino e o Jornal Tornado perguntou ao professor José Pacheco – que aos 70 anos ainda “não ganhou juízo” – o que se aprendeu nestes tempos pandémicos em mais um ano severamente atípico.
O agravamento da pandemia de covid-19 no início de 2021 levou a que mais de 1,2 milhões de alunos voltassem novamente para casa, pouco depois das férias do Natal. Os números de infectados não paravam de subir e os hospitais do País entravam em ruptura. O receio voltava a instalar-se no dia-a-dia dos portugueses e o Governo de Costa impôs, então, a interrupção das actividades lectivas e não lectivas presenciais, durante duas semanas, a partir de 22 de Janeiro.
Depois da experiência do primeiro confinamento, a segunda fase do modelo de ensino à distância regressou a 8 de Fevereiro e o verdadeiro impacto da avalancha de mudanças na comunidade escolar ainda está por traçar. Mas não para o mestre em “Educação da Criança”: tanto a aula presencial como a aula à distância “é tempo perdido e ilusão de ensinagem”.“Ou tralha costumeira do obsoleto sistema de Educação”.
Jornal Tornado: Na recta final do ano lectivo é tempo de balanços. As escolas, alunos e professores vão voltar a ser os mesmos na era pós-covid?
José Pacheco: Recordo-me de, há cerca de um ano, o senhor ministro, numa comunicação ao País, afirmar que seria “uma escola bem diferente” aquela que encontrariam os estudantes. Mentiu.
Pode concretizar?
Foi uma “escola igual” aquela que ele anunciou, porque o isolamento social daria lugar a um regresso à mesmice.
“Confinados nas suas casas, os jovens denotavam total ausência de autonomia. A escola da aula fizera deles seres dependentes, individualistas”
O Governo de Portugal decretou que os tempos lectivos seriam concentrados apenas no período da manhã ou da tarde. As turmas poderiam ser desdobradas, para garantir o distanciamento social, embora não se indicasse um número máximo de alunos habitando um mesmo espaço. Os intervalos entre as aulas passariam a ter “a menor duração possível” e, entre as aulas, os alunos permaneceriam dentro das salas.
No despropósito desse “regresso às aulas”, as medidas de prevenção da covid-19 consistiriam em reformular horários. As aulas de cada turma deveriam ser consecutivas, para que não houvesse períodos livres entre elas. As escolas deveriam “concentrar o máximo de aulas de cada turma para minimizar o número de vezes que os alunos tenham de se deslocar à escola, ao longo da semana”.
As aulas teriam de ser dadas entre as dez e as dezassete horas. E os horários das turmas seriam desfasados “evitando, o mais possível, a concentração dos alunos, dos professores e do pessoal não docente no recinto escolar”. As salas de “dar aula” não poderiam ser contíguas, mas distantes umas das outras. Dentro delas, haveria apenas um aluno por mesa e deveria ser evitada uma disposição de mesas em que os estudantes ficassem de frente uns para os outros.
“Muitos pais me pediam ajuda. Mas que ajuda poderia eu dar? Dizer-lhes que deveriam rejeitar as inúteis aulas online, recusar participar da farsa? Seria pouco aconselhável, porque as escolas e as secretarias reforçavam ameaças”
Confesso que corei de vergonha, perante mais esse ministerial delírio. E possuído pela indignação, perante o obsceno silêncio dos meus companheiros das ciências da educação face a tantos absurdos – tempo lectivo, intervalo, horário de turma, a tralha costumeira do obsoleto sistema de Educação.
Após dois confinamentos com aulas à distância, nada se aprendeu?
Durante décadas, o poder público desperdiçou recursos e fomentou a reprodução da mesmice em versão digital.
Quando as escolas começaram as emissões de TV e a exportar inúteis aulas virtuais, as “ajudas” às famílias surgiam online, sob a forma de paliativos de um modelo de ensino obsoleto e sem fundamento científico. Confinados nas suas casas, os jovens denotavam total ausência de autonomia. A escola da aula fizera deles seres dependentes, individualistas.
Muitos pais me pediam ajuda. Mas que ajuda poderia eu dar? Dizer-lhes que deveriam rejeitar as inúteis aulas online, recusar participar da farsa? Seria pouco aconselhável, porque as escolas e as secretarias reforçavam ameaças com o legalismo de “um artigo 4.º” de um decreto qualquer que, “pelo disposto no Estatuto do Aluno e Ética Escolar”, estavam os alunos obrigados ao dever de assiduidade nas sessões síncronas e ao cumprimento das atividades propostas para as sessões assíncronas, “nos termos a definir pela escola”. E passavam das tentativas de persuasão à intimidação: “Quero ressalvar que a dita escolaridade obrigatória implica deveres para todos nós, alunos, professores e pais e é para ser levada a sério, podendo trazer complicações para quem não cumpre”. Este e muitos outros docentes não eram “éticos”, nem “levavam a sério” o seu múnus profissional, mas não o sabiam. Uma subcultura profissional, forjada numa pedagogia fóssil e numa miserável formação de professores, os impelia à obediência a “legítimos superiores”, os impedia de se aperceberem figurantes de uma farsa, que poderia redundar em drama.
E essa “farsa” acabou mesmo em drama?
A negação do direito à educação não acabou. O crime de abandono intelectual de milhões de alunos continua.
Eu temo que professores e famílias não tenham entendido a mensagem do vírus. Nos últimos duzentos anos, a escola da aula recusou o direito à educação a milhões de seres humanos, fez mais vítimas do que o vírus corona. Eu temo que, após a crise, as bases do sistema econômico e do educacional não se modificassem. E que os pobres alunos regressem…às aulas.
“A negação do direito à educação não acabou. O crime de abandono intelectual de milhões de alunos continua”
Durante o ensino online, os docentes confessavam-se exaustos e sob pressão a desdobrarem-se em esforços sobre-humanos com demasiadas formalidades e burocracias… O silêncio que critica diz respeito à forma como se organizou o tempo e o espaço?
O que defendo é que aula presencial, ou à distância, é tempo perdido e ilusão de ensinagem.
Esta fase foi uma oportunidade perdida para reformular estruturalmente a forma de ensinar? O que seria uma “escola bem diferente”?
As “escolas diferentes” são aquelas que a todos asseguram o direito constitucional, fundamental, à educação.
Que propostas concretas podiam alterar o cenário do tal “regresso à mesmice” que condena?
Poderei sugerir cinco propostas concretas e já concretizadas: Escola da Ponte (em Portugal), Escola Amorim Lima, Escola Campos Salles, Projeto Âncora, Comunidade de Aprendizagem do Paranoá, Escola 115 Norte (no Brasil). E poderei “sugerir” muitas mais.
Em Portugal há um modelo de gestão escolar demasiado obediente ao “seu dono”, ao Ministério da Educação?
Há lideranças tóxicas e uma regulamentação instrucionista das leis, o primado de uma administração burocratizada e contrária ao espírito da lei.
Ainda sobre o recurso às novas tecnologias durante o ensino online, que balanço faz? Mais ganhos ou perdas?
Com ou sem novas tecnologias de informação e comunicação, a escola precisa ser reinventada. Mas do modo como as novas tecnologias estão sendo introduzidas nas escolas, temo que se transformem em panaceias, que apenas sirvam para congelar aulas em computadores, aulas que os alunos, acostumados ao imediatismo e à velocidade dessas tecnologias, acriticamente consumam, sem resquícios de cooperação com o aluno vizinho, dependentes de vínculos afetivos precários, estabelecidos com identidades virtuais.
“O modo como as escolas utilizam a Internet fomenta imbecilidade e solidão”
A Internet é generosa na oferta de informação. Basta clicar para repetir, até que a matéria seja compreendida. Tudo aquilo que um professor pode “ensinar” numa aula está plasmado, de modo mais atraente, na tela de um computador.
Os professores do “futuro” irão manter-se ancorados em aulas obsoletas servidas por lousas digitais, ou irão atualizar-se? Irão replicar aulas congeladas no Youtube e em tablets, ou irão usar o digital ao serviço da humanização da escola?
E será inútil ignorá-las.
É evidente. As novas tecnologias são incontornáveis. A Internet não é uma ferramenta; é uma sociedade. Apenas será necessário saber o que fazer com as novas tecnologias. É certo que as escolas se têm enfeitado de novas tecnologias, mas sem lograr intensificar a comunicação e a pesquisa. O modo como as escolas utilizam a Internet fomenta imbecilidade e solidão.
“Nos últimos duzentos anos, a escola da aula recusou o direito à educação a milhões de seres humanos, fez mais vítimas do que o vírus corona”
Como se lida com esta sociedade, então?
Talvez não lidando com a Internet como instrumento, utilizando-a como sociedade, uma rede de pessoas, sem centro.
Uma escola sem jaulas é possível?
Ainda nos anos 70, tantos quantos tem hoje, José Pacheco chegou à Escola da Ponte, em Vila das Aves, concelho de Santo Tirso, como professor substituto de uma docente em baixa de maternidade. Deparou-se com uma turma onde se sentavam alinhados mais de 60 alunos a aguardar que alguém soubesse como dar aulas.
Talvez tenha sido este o rastilho que o levou, juntamente com uma dupla de professores, a querer questionar os tradicionais paradigmas da Educação. E a concluir que talvez não soubessem o que seria isso de “dar aulas”, já que julgavam que as davam “tão bem” e havia “quem não aprendesse”. Foi em equipa que idealizou então o projecto “Fazer a Ponte”, contra críticos e ignorados impropérios.
Em três décadas de vida daquela que se viria a tornar referência no ensino público, adjectivado como “inovador”, “alternativo”, ou diferente”, ocorreu aquilo que José Pacheco designa por “mutação genética” do sistema educativo: foi preciso “desmilitarizar” o acto de ensinar trazido da Prússia, ou “desenjaular” o acto de ensinar originário das prisões inglesas em tempos da Revolução Industrial.
O não às turmas, às aulas expositivas por disciplinas, à organização por idades, aos testes marcados pelos professores (permitido por um contrato de autonomia que permitiu à Escola da Ponte flexibilidade nos currículos do pré-escolar ao 9º ano)… todos estes nãos foram replicados além-fronteiras, provando que é possível outra educação, aliando excelência académica à inclusão social.
Ao mesmo tempo que a música de fundo regulava o ruído e auxiliava na concentração, o professor Zé, como gosta de ser conhecido, eliminava muros na escola que idealizou. E derrubava barreiras também na sua vida profissional. Mas o objectivo, sempre em mente, habitava o mesmo espaço. Ruma ao Brasil para continuar e fazer nascer construções sociais de aprendizagens, porque o acto de ensinar e o acto de aprender, como repete, não podem ser solitários. Eles exigem autonomia, liberdade, responsabilidade. Também criatividade, entreajuda, noção de comunidade, e, portanto, solidariedade, frisa. “Onde não há vínculo amoroso não há aprendizagem”.
No modelo tornado inspiração para uns, motivo de ataque para outros, cada aluno organiza o plano de estudo de acordo com os seus interesses. Todos desenvolvem projetos de pesquisa e agrupam-se por espaços de iniciação, consolidação e aprofundamento. Os professores, esses, são chamados de orientadores educativos e não preparam projectos para os alunos, constroem projectos com os alunos. “Um formador não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é, veicula competências de que está investido”, destaca Pacheco.
O pedagogo, hoje mestre em Educação da Criança, não exibe prémios nem galhardetes, e nos últimos 15 anos deu asas a mais de uma centena de projectos educativos indutores de transformação social – esse é o seu desígnio. Arregimenta plateias em conferências e palestras para provar que: “as escolas não são edifícios” a dividir anos, ciclos ou turmas; os alunos do século XXI não podem ter professores do século XX a dar aulas do século XIX; “as escolas são pessoas e as pessoas são os seus valores”; “onde não há vínculo amoroso não há aprendizagem”.
Natural do Porto, o professor Zé estudou engenharia e chegou a ser electricista. Foi professor primário e universitário. Em 2004, foi eleito comendador da Ordem da Instrução Pública pelo então Presidente da República Jorge Sampaio. Define-se como um “louco com noções de prática” e com “idade para ter juízo” (a frase que várias vezes ouviu). Continua a criar dezenas de redes de aprendizagem, orientadas pelas regras da cidadania, e a interrogar o estabelecido: “Por que são as escolas geridas por burocratas e não por pedagogos?