Os versos de Renata Pallottini professora da ECA/USP, dramaturga, ensaísta e poeta que faleceu recentemente, ressoam e reverberam no chão de palavras como matérias carnudas com polpas vermelhas e transparentes. A poesia de Pallottini reverbera a matemática como a de João Cabral de Mello Neto e as metáforas sensoriais do corpo típicas da poesia de autoria feminina. Ela escrevia poesia de maneira performática, fruto de sua intensa relação com o teatro. Praticamente, ela foi uma dramaturga antes de ser poeta que inclui roteiros para a televisão como o de Vila Sésamo e Malu Mulher e fez 8 peças de teatro só entre 1969 e 1982, inclusive uma sobre o seu time do coração: o Corinthians.
A professora se dizia corinthiana desde pequena, daquelas que acompanhavam os jogos e torciam com fervor, dando pitacos nas escalações e nas contratações. É essa sua paixão pelo Corinthians que vamos retratar aqui, analisando principalmente os seus poemas. Renata Pallottini é uma das melhores vozes da poesia de autoria feminina do nosso tempo! Ela escreveu a peça “O dia em que o Corinthians foi campeão” anteriormente ao título de 1977 e três poemas e uma crônica que falam dessa paixão tão desmedida quanto a corinthiana. Seu senso de justiça apurado e sua busca pelas raízes clássicas da nossa cultura, fizeram a ver no futebol e no Corinthians, uma expressão de democracia popular que eleva os injustiçados e os excluídos à igualdade, à fraternidade e à liberdade. O Corinthians visto como um grande produtor de direitos humanos inalienáveis.
Como na poesia abaixo:
“São onze contra onze
e o povo em frente
É o jogo da bola
e o povo enfrenta.
É a pura compra e venda
e o povo, crente.
Sem nenhum pão no dente
de bandeira na mão
os guardas pela frente
o pau quebrando
/(e a Fiel comparece)
o povo paga sempre
o povo esquece!
…Coringão, Coringão,
vais cobrir o buraco
que ficou no bolso
na cabeça
no saco?
Vais me dar a mulher,
o filho, o emprego?
Coringão, é melhor te ver
do quer ser cego.
Esse poema, escrito por Renata após o título de 1977 que como ela mesmo disse em seu artigo: “Futebol, poesia e drama” passa ser o momento mais lírico e poético que ela experimentou no futebol, representa a teatralização do espetáculo do jogo, em que a massa ou o público ganha um papel maior do que as platéias dos teatros, pelo menos no que tange à torcida corinthiana:
Fui para a Avenida Paulista, como toda gente que se prezava;
gritei, cantei e comecei a pensar no que seria aquele mundo de povo, em plena ditadura, gritando os slogans, a que tinha direito e começando por derrubar as traves, do gol, depois os alambrados, depois os portões do Morumbi e, por fim, símbolos do poder e da força. Era muito sonho, mas, em todo caso, nada me impedia de sonhar. (Pallottini, 2009 p.3)
O que surpreende a poeta, é a possibilidade de agente transformadora da realidade que aquela massa poderia ter, principalmente durante a Ditadura. De repente, em uma época em que era proibido ter voz e pensar, a torcida corinthiana conseguia como um turbilhão causar arrombos e furor marcando sua presença e sua personalidade por onde passava. No teatro do futebol, o público corinthiano se tornava ator. Por isso, o foco de Renata será analisar a torcida.
Em “Onze contra onze”, para a poeta corinthiana, o Corinthians se torna o pão daqueles que não têm nenhum pão no dente e por causa dele é que vale ir em frente e enfrentar toda repressão que a torcida corinthiana sofria da polícia nas idas aos estádios. Renata parece opor nestes versos; a esperança e o significado de vida que o Corinthians dá para o povo desfavorecido e a desilusão imposta por um sistema excludente e opressor que não poupa os mais pobres nem no futebol. Na primeira estrofe, o clima de guerra é abordado: “São onze contra onze/e o povo em frente/ É o jogo de bola/ e o povo enfrenta”, mostrando a relação dúbia entre o jogo, a brincadeira e a representação de uma guerra, e como se a parte da guerra sobrasse toda para o povo, o qual ainda tem que enfrentar a polícia e as injustiças sócio-políticas fora dos estádios.
A poeta corinthiana entende e exalta o simbolismo crucial que o Corinthians exerce na vida das pessoas desprovidas de seus direitos básicos, e aproveita essa atmosfera de magia para destacar a importância que o seu time tem nas primeiras estrofes. Contudo, nas duas últimas estrofes, Renata destaca como a realidade após o jogo é dura, não é mágica e sim melancólica e sofrida: “ …Coringão, Coringão/ Vai cobrir o buraco?/ Que ficou no bolso/ na cabeça/ no saco?/ Vai me dar a mulher/ o filho, o emprego?” , isto é, o futebol, neste caso o Corinthians, nem de longe se torna uma solução para os problemas que esse povo sofre, nem de longe resolve as mazelas históricas cravadas no destino dos menos favorecidos, tanto socialmente quanto psicologicamente, porque a fome e o desemprego também doem na alma e na mente. Porém, forjou-se no símbolo alvinegro um sentido de luz e amplidão para os que não tem nada: Coringão, Coringão/ É melhor te ver/do que ser cego”.
É como se Renata Pallottini compreendesse o futebole o Corinthians como um grande teatro da vida em que talvez fosse um dos poucos em que o pobre, o desvalido, o miserável pudessem atuar com uma força tão pujente jamais vista em outras áreas. Ela chega a lamentar como essa força não se transforma em ação transformadora da vida: “Oh. Jogo polivalente; /Por que não vales para comprar leite? /Por que não serves para eleição? /Por que a alegria do meu povão/não permanece?
Outro poema em que ela opõe o simbolismo mágico que a camisa do Corinthians
exerce e a realidade é o poema: “o Corinthiano”.
Corinthiano
Não posso sair de casa
há polícias na rua
não posso ir para o trabalho
meu trabalho está cercado
não posso falar em liberdade
é proibido.
Posso apenas dormir
comer um pouco beber
e gritar “gol”.
Mesmo assim só quando o meu time
ganha.
O Corinthians neste caso, além de ser a paixão redentora do sofrimento dos mais pobres, é o único lugar em um período de Ditadura, em que é possível a liberdade e a democracia. Renata adianta em seus textos dois pensamentos caros do Dr Sócrates sobre o poder transformador do nosso time: o primeiro de que ele é a voz e expressão de um povo que não tem voz e a possibilidade deste ser o palco de lutas políticas pela emancipação deste povo por si próprio. A escritora paulista compreende o Corinthians como esse oásis em que o indivíduo desprovido de tudo que lhe é mais caro, tanto em seus direitos básicos, quanto em sua manifestação como sujeito de voz, pode ter a sua identidade reconhecida e um momento único de felicidade. Em meio ao cerceamento da fala, do pão e do pensamento, gritar gol do Corinthians torna-se o sonho possível, o espaço em que se permite existir plenamente sem nenhum medo no peito, apenas calor, grito e poema.
Entre a desilusão com a realidade medíocre, sem nenhum retorno e que retira tudo do sujeito e que nega sua humanidade, e a magia e o encanto que o Corinthians proporciona a esse mesmo sujeito para que ele seja autêntico, vivo, humano e detentor de uma voz poderosa, a poeta Renata Pallottini parece escolher a segunda opção felizmente.
Referências Bibliográficas
PALLOTTINI, Renata. Entrou em casa tarde e chateado. In: Jornal de Poesia.
Disponível em: Entrou em casa tarde e chateado. Acesso em 01/01/2021.
PALLOTTINI, Renata. Futebol, poesia e drama: o espetáculo. In: Comunicação e Educação. São Paulo: ECA/ USP, ano XIV, número 3, ( pg. 57 e 62), Set. e Dez de 2009.
VASCONCELOS, Ana Lúcia. Renata Pallottini: Consciência do trabalho urgente e humilde. In: Vita Breve, revista digital de arte e cultura. Disponível em:
Renata Pallottini : consciência do trabalho urgente e humilde. Acesso em 02/01/2021.
Texto original em português do Brasil