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Sexta-feira, Dezembro 20, 2024

A poesia de combate de Agostinho Neto

A trajetória política de Agostinho Neto é inseparável de sua poesia, que, assim como a de Craveirinha, em Moçambique, é por vezes chamada de “poesia de combate”.

Agostinho Neto, poeta, escritor e líder político cujo centenário de nascimento foi celebrado neste ano, foi um fundadores da poesia moderna angolana na segunda metade do século XX, ao lado de autores como Ruy Duarte de Carvalho e Arlindo Barbeitos, e também foi um dos responsáveis pela criação do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) e o primeiro presidente do país após a sua independência de Portugal.

Ele fez parte de uma geração de jovens escritores e intelectuais africanos que tiveram a oportunidade de estudar em Portugal, onde frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e participou das atividades da Casa de Estudantes do Império, em Lisboa, ao lado de outros jovens vindos de Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. Escreve os seus primeiros poemas em 1948, aos 26 anos de idade, numa época em que a censura portuguesa estava muito mais atenta à prosa do que a poesia, considerada menos “subversiva” do que o romance, a novela ou o conto, gêneros em que Luandino Vieira e Pepetela retratavam a sociedade colonial em Angola.

Agostinho Neto entrou em contato, na capital portuguesa, com as ideias marxistas e com o Partido Comunista Português (PCP). Perseguido pela PIDE, a polícia política salazarista, foi preso quando recolhia assinaturas para a Conferência Mundial da Paz e deportado para Cabo Verde, onde ficou internado no campo de concentração de Tarrafal, assim como outros poetas e ativistas políticos de sua geração, até ser permitido o seu retorno a Lisboa, onde fundou, ao lado de Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos e outros ativistas, o Centro de Estudos Africanos, fechado pela polícia em 1950.

De Lisboa, Agostinho Neto foi para o exílio, onde atua na fundação do MPLA, organização política e guerrilheira de orientação marxista. Em 1951, é eleito representante da Juventude das Colônias Portuguesas no Movimento da Unidade Democrática, ligado à oposição portuguesa ao salazarismo, o que lhe rende nova prisão, desta vez por 18 meses, sendo libertado após uma petição internacional em sua defesa assinada por intelectuais como Nicolás Guillén, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Libertado, volta para Angola, onde abre um consultório médico e é novamente preso, assim como a sua esposa, em 1960, e enviado para o Cabo Verde. Ele estava preso quando recebe a notícia do falecimento de sua filha.

A nova prisão do poeta e ativista angolano gera revolta em sua terra natal e é realizada uma marcha de protesto, duramente reprimida pela polícia, na qual 30 pessoas foram mortas e cerca de 200 feridas, no dia que ficou conhecido como o Massacre de Icolo e Bengo. Dois anos mais tarde, transferido para uma prisão em Lisboa, consegue escapar novamente e alcança a Inglaterra, passando pelo Marrocos e Congo. Entre 1963 e 1974 lidera o braço militar do MPLA até a Revolução dos Cravos, que coloca fim à ditadura salazarista e acelera o processo de libertação nacional das colônias portuguesas na África.

Em 1975, retorna a Luanda, onde organiza um governo de transição que inclui representantes do MPLA e de dois outros movimentos guerrilheiros, estes de direita, a FNLA e a Unita. Este acordo de paz é rompido no ano seguinte e logo se inicia uma guerra civil, que se estenderá até meados do ano 2000. Agostinho Neto falece muito antes disso, em 1979, no decorrer de complicações durante uma cirurgia de fígado, realizada num hospital em Moscou, com apenas 57 anos de idade. A trajetória política de Agostinho Neto é inseparável de sua poesia, que, assim como a de Craveirinha, em Moçambique, é por vezes chamada de “poesia de combate”. Do ponto de vista estético, porém, essa poesia não se limita ao tom retórico-discursivo da poesia de resistência; ela apresenta vários elementos que serão trabalhados mais tarde inclusive pela vanguarda literária da década de 1970, como o uso de palavras em idiomas nativos, as imagens fotográficas da paisagem natural angolana, a incorporação de provérbios, da fala coloquial e de cenas do cotidiano.

A poesia de Agostinho Neto não pode ser julgada em bloco; há peças elaboradas, com trabalho apurado de linguagem, ao lado de outras composições, mais fáceis, próximas àquilo que chamaríamos de poesia de circunstância, embora mesmo esses poemas tenham importância como documentos que retratam uma época da história e da literatura de Angola. Em sua melhor lírica, reconhecemos a influência dos modernistas brasileiros, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, de cubanos como Nicolás Guillén e espanhóis da Geração de 27, como Federico Garcia Lorca, além das leituras de poetas angolanos e moçambicanos da época. Vamos agora ler agora alguns dos poemas de Agostinho Neto:

Noite

Eu vivo nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.

Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.

São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.

Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram com as
coisas.

Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.

Também a noite é escura.

Neste poema, construído em versos livres, sem rimas e com estrofes de diferente número de versos, o ritmo é fluente e não obedece a uma alternância rígida de sílabas fracas e fortes. A imagem que predomina aqui é a da escuridão, com toda a sua variedade de camadas polissêmicas: negra é a noite, a cor da pele, ausência de luz nos bairros pobres, é a situação de miséria e exclusão social, é o silêncio e os sonhos informes; negra é, sobretudo, a escravidão, retratada aqui num espaço urbano de trabalhadores explorados pela minoria branca. Uma única palavra, assim, organiza todo o poema, desencasula as as imagens que serão apresentadas nele e as unifica em um único organismo poético. O primeiro verso do poema, “Eu vivo nos bairros escuros do mundo”, por outro lado, ultrapassa o cenário angolano, projetando essa situação para todos os países em que o racismo, o colonialismo e a violência estão presentes, seja na África, na América Latina ou em outros quadrantes do planeta. Em outro poema, sem título, Agostinho Neto escreve:

Sou um mistério.

Vivo as mil mortes
que todos os dias

morro
fatalmente.

Por todo o mundo
o meu corpo retalhado
foi espalhado aos pedaços
em explosões de ódio
e ambição
e cobiça de glória.
Perto e longe
continuam massacrando-me a carne
sempre viva e crente
no raiar dum dia
que há séculos espero.

Um dia
que não seja angústia
nem morte
nem já esperança.

Dia
dum eu-realidade.

Neste poema, o que antes era escuridão, agora é mistério, morte simbólica ou ausência: “Vivo as mil mortes / que todos os dias / morro”, mortes causadas por “explosões de ódio, ambição e cobiça de glória”, vale dizer, causadas pela ação colonialista, que está implícita no poema, mas não é nomeada diretamente, o que torna sutil a relação entre a subjetividade do poeta e as condições históricas em que ele vive. O tom distópico dos versos, porém, é subvertido nas linhas finais, em que o eu lírico expressa o anseio por “Um dia / que não seja angústia / nem morte / nem já esperança. / Dia / dum eu-realidade”. No verso final, o poeta consegue, com extrema concisão, exprimir o seu anseio logopaico de união entre o ideal subjetivo de realização, claridade, utopia, e a realidade objetiva de seu país, em um futuro de liberdade e independência. Este é um poema político que destoa da maioria das peças mais conhecidas de Neto, justamente por tratar a questão de maneira elíptica, enigmática, e não menos intensa.

Vamos conhecer mais alguns de seus poemas:

Confiança

O oceano separou-se de mim
enquanto me fui esquecendo nos séculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espaço
condensando o tempo.

Na minha história
existe o paradoxo do homem disperso
enquanto o sorriso brilhava
no canto de dor
e as mãos construíam mundos maravilhosos.

John foi linchado
o irmão chicoteado nas costas nuas
a mulher amordaçada
e o filho continuou ignorante.

E do drama intenso
duma vida imensa e útil
resultou certeza:

As minhas mãos colocaram pedras
nos alicerceres do mundo
mereço o meu pedaço de pão!

Contratados

Longa fila de carregadores
domina a estrada
com os passos rápidos

Sobre o dorso
levam pesadas cargas

Vão olhares longínquos
corações medrosos
braços fortes
sorrisos profundos como águas profundas

Largos meses os separam dos seus
e vão cheios de saudades
e de receio
mas cantam

Fatigados
esgotados de trabalhos
mas cantam

Cheios de injustiças
calados no imo das suas almas
e cantam

Com gritos de protesto
mergulhados nas lágrimas do coração
e cantam

Lá vão
perdem-se na distância
na distância se perdem os seus cantos tristes

Ah!
eles cantam…

Fogo e ritmo

Sons de grilhetas nas estradas
cantos de passáros
sob a verdura úmida das florestas
frescura na sinfonia adocicada dos coqueirais
fogo
fogo no capim
fogo sobre o quente das chapas do Cayatte.

Caminhos largos
cheios de gente cheios de gente
cheios de gente
em êxodo de toda a parte
caminhos largos para os horizontes fechados
mas caminhos
caminhos abertos por cima
da impossibilidade dos braços.

Fogueiras
dança
tam-tam
ritmo

Ritmo na luz
ritmo na cor
ritmo no som
ritmo no movimento
ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços
ritmo nas unhas descarnadas
Mas ritmo
ritmo.

Ó vozes dolorosas de África!


por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutorado em Teoria Literária pela UFMG  |   Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

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