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Sábado, Novembro 23, 2024

A primavera árabe, dez anos depois, e o fenômeno das fake news

Dez anos depois de um vendedor de laranja se imolar na Tunísia, e incendiar todo o mundo árabe, a mídia ocupa um lugar desconfortável na confiança do público. Diferente do Ocidente, ali, as fake news são vistas com ambiguidade, com movimentos de resistência a sua regulação em países de governos autoritários.

por Hakim Beltifa, em The Conversation | Tradução de Cezar Xavier

A onda de revoltas que ficou conhecida como Primavera Árabe começou há uma década – em dezembro de 2010. Os árabes se mobilizaram aos milhões em apelos coletivos por democracia, justiça e liberdade de expressão. Governos caíram. Nomes como Mubarak, Gaddafi, Ben Ali foram com eles.

Uma retrospectiva do que aconteceu nos levantes árabes não pode deixar de mencionar o subsequente esmagamento dos movimentos democráticos; as repressões à liberdade de imprensa que permanecem em vigor até hoje.

Em dezembro de 2010, protestos antigovernamentais eclodiram na pequena cidade tunisiana de Sidi Bouzid, logo se espalhando por todo o país e, finalmente, provocando manifestações semelhantes em países vizinhos. Em fevereiro de 2011, Egito, Líbia, Bahrein, Iêmen e Síria foram engolfados por seus próprios levantes, com seus governos autocráticos sob pressão crescente.

Passaram-se 10 anos desde que um vendedor de frutas tunisino se incendiou em protesto contra a polícia que o espancou e apreendeu seus produtos. Mohamed Bouazizi morreu 18 dias depois, provocando indignação nacional. Centenas de milhares foram às ruas para desafiar o governo autoritário de Zine El Abidine Ben Ali. Após 24 anos no poder, o presidente fugiu do país em 14 de janeiro de 2011.

 

Desinformação e caos

Os levantes árabes há uma década foram sobrecarregados por convocações virtuais de adesão aos protestos, mas a internet logo foi inundada pela desinformação, enfraquecendo os ciberativistas da região.

Quando o ditador tunisiano Zine El Abidine Ben Ali fugiu do país, em janeiro de 2011, rumores e incertezas criaram “pânico e histeria”, disse a ex-ativista e empresária Houeida Anouar.

“O dia 14 de janeiro foi uma noite horrível, muito traumática”, disse ela. “Ouvimos tiros e um vizinho gritou “escondam-se, eles estão estuprando mulheres””.

Enquanto a imprensa pró-regime espalhava desinformação, a enxurrada de notícias falsas também se espalhava pela internet, um espaço que os ativistas viam há tempos como um refúgio da censura e da propaganda.

O jornalista e pesquisador Hakim Beltifa diz que o terreno era propício para “a divulgação de notícias falsas”.

“As notícias falsas alimentavam a desconfiança das pessoas” nos meios de comunicação estatais tradicionais, que “obscureciam a realidade e mantinham as pessoas na ignorância”, escreveu Beltifa para a revista virtual The Conversation.

Quando a TV estatal egípcia acusou a rede americana de “fast food” Kentucky Fried Chicken (KFC) de oferecer refeições gratuitas a manifestantes pró-democracia na emblemática Praça Tahrir, no Cairo, os rumores se alastraram no mundo virtual, em meio a uma série de relatos de que potências estrangeiras supostamente tinham se infiltrado no levante.

Mas ativistas e jornalistas locais encontraram poucas evidências sobre a rede de restaurantes especializada em frangos fritos. A maioria dos manifestantes estava sobrevivendo com pão sírio e kushari, um prato popular e barato de rua com arroz, massa e lentilhas.

Logo, uma série de falsas narrativas originadas do meio virtual estavam minando a confiança nas fontes da internet. Um exemplo foi o caso da “Garota Gay de Damasco”.

Amina Abdallah Arraf era uma jovem lésbica sírio-americana, ativista anti-regime e autora de um página amplamente seguida por observadores do levante sírio.

A questão é que ela nunca existiu.

Quando houve a informação de que Amina havia sido “sequestrada” em Damasco, seus preocupados seguidores se mobilizaram para resgatá-la das mãos do regime de Assad.

Porém, eles descobriram que a blogueira, que tinha sido um ícone do movimento pró-democracia da Síria, era na verdade Tom MacMaster – um americano barbudo na casa dos 40 anos que mora na Escócia e esperava alcançar alguma fama literária.

“Isso parece bastante brando hoje, pois aprendemos a suspeitar mais desse tipo de informação, mas, na época, a suspeita era muito menos prevalente”, explica o pesquisador Yves Gonzalez Quijano.

Outra personalidade inventada foi Liliane Khalil, uma suposta jornalista americana que cobria a “Primavera Árabe” para vários meios de comunicação e que indiretamente expressou apoio ao governo do Bahrein.

História e o fenômeno das fake news

Para lembrar esta efeméride selecioamos um artigo de 2018, de Hakim Beltifa, doutorando em ciências da informação e comunicação no Crem, University of Lorraine, jornalista apresentador na France 24 e vice-editor-chefe, University of Lorraine.

Beltifa analisa o cenário atual em que a imprensa perdeu credibilidade por ter se associado àqueles governos autoritários, ao passo que se proliferam as fake news e a desinformação nesses países. Elites e governos desses países veem o fenômeno como ameaça e risco de novas revoltas, que deixaram traumas profundos na sociedade.

O sentimento em relação a este tema é ambíguo, pois há resistência à legislação para atacar o fenômeno, vista como forma de reprimir a pouca liberdade de expressão que existe em alguns desses países. Um modo de perceber o tema bastante específico de como ele é tratado nos países ocidentais. Leia o artigo publicado no The Conversation França, em tradução de Cezar Xavier:

 

Primavera árabe e notícias falsas: pequenas histórias e História

Segundo seus lexicógrafos, o uso da expressão “fake news” deu um salto de 365% desde 2016. Esse salto repentino não é apenas característico da realidade dos fatos nos Estados Unidos ou na Europa. Também, e de forma crítica, preocupa o mundo árabe, e isso desde os protestos populares que o abalaram fortemente em 2011. Se, no Ocidente, o debate tem aumentado desde 2017, esse flagelo já está flagrantemente assolando a web árabe desde pelo menos sete anos.

Na raiz de sua dramática ascensão estavam os contextos nacionais propícios à disseminação de notícias falsas devido a uma profunda crise na mídia tradicional controlada por países árabes. Qualquer conteúdo veiculado por esses meios de comunicação desperta sua cota de críticas e desconfiança no dia a dia entre o público cada vez mais motivado por uma busca sem precedentes pela liberdade. As “notícias falsas” alimentavam-se, portanto, da desconfiança destes meios de comunicação que obscureciam, sob a pressão de um regime descrito pelos seus adversários como ditatorial, a realidade e mantinham o povo na opacidade e na ignorância. Um controle estrito da informação que buscaria preservar, segundo seus partidários, a estabilidade do país e uma “frágil paz social”.

A divulgação de “notícias falsas” no mundo árabe também evidencia uma desconfiança explícita e assumida da autoridade do Estado e de sua mídia, descritos como órgãos de propaganda pagos pelo poder local. Os jornalistas estão, portanto, confinados a um papel mais ou menos desconfortável, onde o jornalismo muitas vezes rima com lealdade e autocensura.

Em democracias árabes nascentes ou em regimes árabes autocráticos com um histórico pesado na área de direitos humanos e liberdades, surgem questões muito cruciais. Elas são diferentes daquelas levantados por esse problema no Ocidente. Apesar dos esforços louváveis ​​para atender gradualmente às demandas internacionais de liberdade de expressão, os regimes árabes realmente têm legitimidade para avaliar a confiabilidade das fontes? Devemos confiar a eles esta delicada tarefa, apesar de seu passado repressivo? Eles podem realmente ser os fiadores da verdade?

 

Marrocos: em breve, lei contra “fake news”

Hoje em dia, vozes se levantam nos países do Magrebe para se opor firmemente à interferência do Estado neste “processo de descontaminação” da informação. É o caso do Marrocos, onde jornalistas e membros da sociedade civil se mobilizam, há vários dias, com veemência, contra um projeto de lei que está sendo preparado pelo Ministério da Cultura e da Comunicação sobre “fake news” que poluem a tela marroquina.

Segunda-feira, 29 de janeiro de 2018, em comunicado de imprensa, é o Ministério do Interior quem chama a atenção para “a gravidade destes atos que podem induzir em erro a opinião pública, bem como o sentimento de o medo e a flagrante violação da ordem pública que isso pode gerar ”.

Hostis ao desejo do governo de legislar sozinho e sem cobrar nada sobre o assunto, os profissionais da mídia no Marrocos denunciam sua “marginalização” e afirmam que a abordagem do governo é “preocupante, injustificada e desnecessária”. Alegam que o arsenal legislativo já existente no país, nomeadamente os artigos 72.º, 106.º e 108.º do Código de Imprensa, é mais do que suficiente nesta área. Esta ação do governo marroquino ocorre em um contexto complicado e muito tenso, marcado pelo descontentamento social que não se enfraquece e pontuado diariamente pelas audiências do polêmico julgamento de manifestantes na região de Rif.

Os que se opõem a este projeto já estão levantando o espectro da censura, que as autoridades marroquinas negam. Neste momento, a agência noticiosa marroquina, MAP (Maghreb Arabe Presse) acaba de lançar um serviço “SOS fake-news” que “permite aos assinantes retificar imediatamente através da rede MAP informações falsas sobre eles” .

 

“Notícias falsas” na Argélia: uma lacuna jurídica a ser preenchida

Ao tratar o tema das “notícias falsas” que polui abundantemente a web argelina, a imprensa nacional pergunta ironicamente se isso não deve ser visto como um sinal de progresso! Esse fenômeno não “cruzou o Atlântico para chegar à Europa antes de se espalhar para a Argélia?” ! Várias notícias falsas surgiram como cogumelos nas redes sociais argelinas, especialmente em 2017, desde rumores sobre o “estado de saúde muito crítico” do presidente Abdelaziz Bouteflika, até a alegada “expulsão de diplomatas argelinos da Arábia Saudita” até a história absurda e delirante do “perfume tóxico que causaria a morte de muçulmanos”, segundo uma nota falsa atribuída ao exército argelino.

Na guerra contra as “notícias falsas”, nenhuma via legislativa está prevista no momento na Argélia para preencher o vazio jurídico nesta matéria. A questão nem mesmo alimenta os debates e a opinião pública parece descuidada com o desfile nacional que seria necessário para conter os danos causados ​​por essa informação falsa.

Nenhum artigo do Código de Informação da Argélia menciona específica e claramente a divulgação de informação errônea, exceto o artigo 92 que obriga “a retificar qualquer informação que se revele inexata”. Jornalistas argelinos concordam que o problema das “notícias falsas” ainda é incipiente no país e tende a se agravar por causa “da predisposição da opinião pública em adotar algumas notícias falsas divulgadas nas redes sociais sem pestanejar”.

 

Tunísia: quando “fake news” “matam o presidente”!

A questão das “notícias falsas” surge com insistência, principalmente na Tunísia, única sobrevivente da Primavera Árabe até agora. Já se foi o tempo em que as redes sociais eram a salvação das nações árabes em busca de liberdade dos regimes autocráticos. Essas redes, entre outras coisas, possibilitaram a liberdade de expressão e permitiram contornar os meios de comunicação oficiais, que estavam condenados à conivência com o poder local ou ao silêncio. Ironicamente, as redes sociais são hoje acusadas de manipular e enfraquecer as democracias.

Atos maliciosos na web tunisina proliferaram desde a revolução de 2011. Os políticos denunciaram repetidamente a degradação do discurso nas redes sociais onde “vale tudo”. Eles apontam para um ambiente poluído por “milícias eletrônicas” ou “mercenários de notícias”. Essas “brigadas virtuais” estão desenfreadas na Internet com o único objetivo de “apodrecer o debate democrático emergente no país”.

Na Tunísia, todos os dias trazem sua cota de informações fraudulentas que servem para “desestabilizar o país e mantê-lo em um clima de medo e incerteza”. Uma situação agravada por um contexto nacional já muito fragilizado pelas dificuldades econômicas e de segurança.

O exemplo mais recente é o falso anúncio, na noite de sexta-feira, 17 de novembro de 2017, da morte do presidente tunisino Beji Caïd Essebsi (BCE). Reitor dos presidentes do planeta, ele se preparava para comemorar seu 91º aniversário quando uma publicação em árabe, fraudada, editada do zero e com o logotipo da França 24, se tornou viral nas redes sociais para anunciar sua morte.

O France 24 reagiu rapidamente publicando uma negativa no ar e em uma postagem que circulou nas redes sociais.

Rapidamente identificados, os dois usurpadores foram condenados em 4 de janeiro de 2018 a seis meses de prisão por “insultar o chefe de Estado” e “divulgar informações falsas”, além de uma multa. Uma lei contra “notícias falsas” vai esperar!

Em 24 de janeiro de 2018, outro caso flagrante de “fake news” se espalhou pela web tunisiana como um incêndio. Este é o anúncio nas redes sociais da retirada da Tunísia da lista de países muçulmanos pela autoridade religiosa sunita do Egito, Al-Azhar.

Esta falsa notícia negada por Al-Azhar veio do desejo do presidente tunisiano Béji Caïd Essebsi de ver o princípio da igualdade entre mulheres e homens, já consagrado na constituição de 2014, estendido ao campo da herança.

 

Um fenômeno planetário, questões únicas!

O problema ligado ao fenômeno das “notícias falsas” no mundo árabe ou no Ocidente pareceria à primeira vista idêntico. Mas há uma especificidade dos países árabes. Reside neste medo onipresente entre jornalistas profissionais de ver a liberdade de imprensa violada e suas palavras silenciadas. Eles temem a instrumentalização maliciosa de um possível arsenal legislativo fortalecido contra a disseminação de notícias falsas.

Em geral, e apesar da indiscutível gravidade do problema das “notícias falsas”, os defensores da liberdade de imprensa no mundo árabe se opõem, por falta de confiança, a quaisquer medidas coercitivas tomadas pelo Estado. Nos países de democracias emergentes e frágeis, os jornalistas preferem, à semelhança dos seus homólogos europeus, uma abordagem construtiva baseada no bom senso, na consciência, na educação e na formação.


por Hakim Beltifa, Doutorando em ciências da informação e comunicação no Crem, University of Lorraine, jornalista apresentador na France 24 e vice-editor-chefe, University of Lorraine    |   Texto original em português do Brasil, com tradução de Cezar Xavier

Exclusivo Editorial PV / Tornado

The Conversation

 

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