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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

A profecia de Mitterrand

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A propósito dos perigos do presidencialismo

  1. Macron e o sistema presidencialista

Editado pela ‘Sidney Laurent’ em Outubro de 2021, ‘A profecia de Mitterrand, do caso Fillon ao Estado Macron’, último livro de Thierry Lebeaux, faz um balanço impiedoso da Presidência de Émmanuel Macron à frente dos destinos da França, escolhendo como inspiração uma citação de François Miterrand:

‘Um Presidente da República apoiado por uma maioria parlamentar dispõe de um poder forte. No limite, mal empregue, esse poder poderia tornar-se perigoso. […] Basta que aceda ao poder uma pessoa de temperamento instável.’

Mais que instável, Lebeaux vê na figura de Macron um ditador em potência que exorbitou habilmente os poderes que lhe tinham sido conferidos para se desembaraçar de concorrentes e assegurar o monopólio do poder.

François Fillon, Primeiro-ministro na Presidência de Sarkozy, a escassos meses das eleições e pouco depois de ganhar as primárias da direita, é confrontado com um processo relâmpago por ter empregado a sua mulher enquanto deputado que resulta numa acusação feita a escassos dias das eleições e faz com que ele perca umas eleições consideradas ‘imperdíveis’.

A Procuradoria Nacional Financeira – departamento especial criado quando Émmanuel Macron ocupava o lugar de Secretário Geral Adjunto da Presidência – e cuja constituição tinha como objectivo a investigação de criminalidade financeira especialmente complexa, desencadeou a investigação horas apenas depois da publicação de um artigo na imprensa (Canard Enchainé) e transformou-o em acusação criminal em tempo record, com um calendário idêntico ao do processo eleitoral.

O processo, em que Fillon foi condenado em primeira instância e que se encontra em recurso com sentença prevista para maio de 2022 – após as próximas eleições presidenciais – é posto em causa, mais do que pela sua substância, pela sua parcialidade, dado que tratou como invulgar o que é uma prática espalhada e deu uma urgência especial a uma situação que vinha de há vinte anos atrás e que tinha cessado havia quatro anos.

Em contraponto, Lebeaux dá vários exemplos, incluindo outro artigo do mesmo Canard Enchainé datado de 1 de Junho de 2016 – pouco antes da demissão de Macron do seu cargo de Ministro e da sua assunção como candidato presidencial – relativa a uma omissão na declaração do seu património, e que não mereceu da mesma instituição qualquer interesse.

Mais importante do que isso foram as numerosas decisões relativas a fusões e aquisições da ordem de muitos milhares de milhões de euros decididas pelo Ministro Macron sobre as quais um deputado e uma associação anticorrupção ANTICOR haveriam de instruir uma queixa por corrupção à Procuradoria.

A teia de ligações e interesses de grupos económicos, contribuições para a campanha presidencial, a maior parte da comunicação social francesa, e as personagens que de assessores do Ministro Macron passam a responsáveis da sua campanha presidencial, fazem a parte mais substancial do livro, que procede a um balanço muito crítico da presidência, especialmente em matéria de liberdades, direitos e garantias.

  1. A monarquização da República

Como Lebeaux nos diz, já antes do seu livro, várias obras, e nomeadamente o ‘Golpe de Estado Macron — o Príncipe contra a Nação’ (L’Observatoire, 2018) por Guillaume Larrivé’ tinha denunciado a deriva autocrática de Macron-presidente, embora tendo como lacuna essencial o de nada dizer sobre a violência exercida para aceder ao poder, inerente a qualquer golpe de Estado.

Sendo constitucionalmente a nomeação dos membros do Governo semelhante em França ao que é em Portugal, a realidade é que passou a ser Macron a escolher não só o Primeiro-ministro, mas como igualmente os ministros que apenas formalmente são propostos pelo Primeiro-ministro. Mais, segundo Lebeaux, ele vai mesmo ao ponto de impor os nomes chave dos gabinetes aos ministros que nomeia, numa lógica de controlo sem precedentes, enquanto utiliza gabinetes específicos como o ‘Conselho de Defesa’, onde participam representantes de comissões ad hoc e que se tornam os reais decisores em matérias de grande importância, como por exemplo, as medidas justificadas pela pandemia.

Lebeaux vê aqui, não o fruto das circunstâncias, mas antes a concretização de uma doutrina. Como se lê no seu livro, numa entrevista à revista ‘Esprit’ em 2011, sobre os ‘labirintos da política’, Macron diz-nos que o ‘tratamento de problemas de longo prazo implica, por vezes, uma forma de “redução” dos poderes políticos, ou seja, o estabelecimento de mecanismos suprapolíticos que garantam ao longo do tempo uma aplicação constante, uma proteção contra os riscos políticos.’

Neste quadro assume naturalmente uma especial importância a secundarização do parlamento, que é afastado de todas as decisões fundamentais, e que o Presidente trata com desdém. O sistema francês actual, no qual o parlamento é eleito na sequência da eleição do presidente, tem feito com que, sistematicamente, sejam produzidas maiorias absolutas parlamentares concordantes com as maiorias presidenciais.

Na presente legislatura, Émmanuel Macron, não dispondo de uma máquina partidária, inspirou-se no movimento italiano cinco estrelas, selecionando pela Web candidatos a deputados com um CV de ‘start ups’, dispostos a investir 25000 Euros na campanha e a ser eleitos sob o omnipresente símbolo de Émmanuel Macron. Estes, apesar de serem maioritariamente desconhecidos e de pouca experiência política, em conjunto com as alas mais oportunistas dos partidos tradicionais que rapidamente aderiram ao macronismo, conquistaram uma expressiva maioria absoluta para Macron.

Mais interessante ainda é que, apesar de essa maioria absoluta se ter seriamente abalado pela dissensão de vários dos seus actores, em nada esse facto mexeu com a capacidade presidencial de exercer o seu poder de forma quase autocrática.

  1. Perigos e paradoxos das reformas

A principal lição que podemos extrair da interessantíssima análise de Thierry Lebeaux é a de que o presidencialismo é um perigo democrático em Estados em que não há nem institucional nem culturalmente a prática de controlos e equilíbrios baseados na separação de poderes, como a que existe nos EUA.

E não se trata de uma lição abstracta! Na formulação da letra constitucional, o sistema semipresidencialista português é semelhante ao francês, sendo o costume e a legislação que dão ao sistema político português um cariz parlamentar.

É possível, por isso, transformar a democracia parlamentar portuguesa num sistema presidencialista – e à imagem da França, passível de se transformar num sistema de ‘monarquia republicana’ – sem que para isso seja necessário alterar profundamente o quadro constitucional.

Mais ainda, penso que pior que a partidocracia portuguesa, é a redução à insignificância dos partidos tradicionais, com a limitação das maiorias parlamentares a uma união feita, por um lado, de oportunistas dos vários quadrantes que mudam de partido como quem muda de camisa, e por outro lado, com start-ups sem experiência, sem provas dadas, sem consistência, feitos na internet para a ocasião. Foi isso mesmo que aconteceu em França à sombra do colapso do quadro partidário tradicional.

E o mais curioso de tudo isto é que o sistema francês, com círculos uninominais, com deputados escolhidos em duas voltas, e por isso com a máxima garantia de que o eleitor sabe em quem vota, pode conduzir tão ou mais facilmente que o sistema de máquinas partidárias, como o português, a maiorias dóceis, anónimas e incapazes de qualquer escrutínio parlamentar digno desse nome.

No caso da França, bastou para isso a justaposição dos mandatos e calendários presidencial e parlamentar; fazendo com que a eleição legislativa seja sequencial à presidencial, e levando por isso o eleitor a considerar o seu voto parlamentar como uma espécie de confirmação do voto presidencial, ignorando a figura do seu deputado.

A grande lição que nos dá a análise de Thierry Lebeaux – com grandes implicações para Portugal – é que um sistema eleitoral, se visto em abstracto, dissociado da arquitectura institucional, da cultura e da tradição políticas, não é garantia de coisa nenhuma, e que um processo de reforma pode facilmente descambar em soluções que não garantem qualquer melhoria da qualidade do sistema político, e bem pelo contrário.

Antes de nos precipitarmos na reforma constitucional que poderá ser aberta na próxima legislatura, convém ter tudo isto em conta.

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