A reacção da Comissão Europeia de rejeição à proposta de orçamento apresentado pelo governo italiano e das notícias e comentários que de pronto fizeram lembrar que aquele governo e a sua economia precisam de financiamento e que “os mercados” se encarregarão de recolocar o país no caminho certo. Estimativas há que apontam para necessidades da ordem dos 250 mil milhões de euros em 2019. Já devia ter sido trazido à primeira linha do debate o modelo de funcionamento do Euro, que impôs às economias da Zona Euro a mais estrita dependência do sistema financeiro e a sua substituição por outro onde o BCE assuma o papel de principal emissor de moeda e financiador de primeira instância dos Estados da Zona Euro, até aos 60% do PIB previstos no Pacto de Estabilidade e Crescimento em vigor na União Europeia.
Itália contra Europa?
A opção do governo italiano não estará em sintonia com a forma de actuação que se espera de um membro de uma união monetária, mas também os persistentes excedentes em conta corrente da Alemanha são uma violação das regras da UE e a França há muitos anos que vem violando as metas orçamentais da UE. A responsabilidade pelas disfuncionalidades da Zona Euro tem múltiplas origens que vão além da moeda única ou agora da Itália.
Claro que no plano político nem mesmo os eurocratas de Bruxelas negarão a Itália, ou a outro membro da União Europeia, o direito a definir as suas políticas orçamentais. Mas no plano prático sempre vão lembrando a necessidade de conformação com as famigeradas regras orçamentais, que no seu desenho nunca previram outra realidade que uma platónica bonança, de rara existência. Do outro lado, não será difícil antecipar que um governo de clara matiz populista dificilmente terá outra estratégia para apresentar que não a das suas convicções (o que quer que seja que isso vale, especialmente quando os bancos nacionais detêm grande parte da dívida do seu país, como é o caso em Itália, o que os lança no caminho da catástrofe se os seus governos adoptarem uma política orçamental oposta às tais regras e o Banco Central Europeu não facilitar o seu financiamento) e a da inflamação da opinião pública italiana (e europeia) contra a nomenklatura europeia.
A Comissão Europeia até pode ter razão na sua apreciação, mas revelou pouca ou nenhuma sensatez ao abrir um confronto com aquela que é a quarta maior economia europeia (terceira com saída da Grã-Bretanha) e que já vai dando alguns sinais de inconformidade (ameaça de controlo de capitais e criação de uma moeda paralela) que só poderão deteriorar ainda mais o conceito de uma união monetária cada vez mais frágil e aos quais a UE, face ao peso da economia italiana, não deverá poder reagir como o fez com a Grécia ou Portugal.
Parece portanto montado um cenário quase perfeito para a eclosão de mais uma crise numa martirizada Europa ainda pouco ou nada refeita da crise das dívidas públicas. Se durante esta a separação se fez entre os preguiçosos e laxistas países do sul e os virtuosos e ricos países do norte, corre-se agora o risco da fronteira perder contornos tão precisos e começar a dividir os nacionalismos travestidos de populistas dos neoliberais e doutras correntes de pensamento e com isso desagregar o pouco que cada vez mais resta das democracias europeias.
Paradigma do populista
Vejam-se os resultados da eleição de Donald Trump – o paradigma do multimilionário populista que se propõem combater os excessos das elites económicas – do Brexit – conduzido para linhas de argumentação de carácter meramente dualista (nós ou eles) distantes da verdadeira questão que era o funcionamento do espaço europeu – das eleições italianas, que ditaram a irrelevância das forças políticas tradicionais e levaram à formação dum governo de contrários (a nacionalista Liga e o populista 5 Estrelas) e a mais recente eleição para Presidente do Brasil duma antiga figura da ditadura militar reconvertido em deputado federal comprometido com os bastidores parlamentares mas agora apresentado como campeão da luta contra a corrupção e a violência, para se compreender a verdadeira dimensão da banalização do discurso político através da redução à sua forma mais primitiva e à mera instilação do medo.
Como sintetizou Yuval Noah Harari no seu último livro (21 lições para o século 21), se em:
…1938, os seres humanos podiam escolher entre três narrativas globais; em 1968, só tinham duas; em 2018, nada resta por onde escolher. Não admira que as elites liberais, que dominaram grande parte do mundo em décadas recentes, tenham entrado numa fase de choque e desorientação. Termos a nossa história à qual nos agarrar é a situação mais tranquilizadora de todas. Nesse cenário, tudo é claro. Ficar-se subitamente sem narrativa nenhuma é assustador. Já nada faz sentido. Um pouco à imagem da elite soviética na década de 1980, os liberais não compreendem como é que a História se desviou da sua rota pré-estabelecida, e falta-lhes um prisma alternativo através do qual interpretar a realidade. A desorientação leva-os a pensar em termos apocalípticos, como se o facto de a História não ter redundado no final feliz que tinham imaginado só pudesse significar que ela caminha no sentido do armagedão. Incapaz de interpretar a realidade, a mente aferra-se a cenários catastróficos. Como alguém que imagina que uma dor de cabeça é sintoma de um tumor cerebral fulminante, muitos liberais temem que o Brexit e a ascensão de Donald Trump prenunciem o fim da civilização humana»
Porque na realidade são incapazes de formular outro futuro que não seja decalcado do passado que conhecem.
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