As greves e a barganha dos despojos antes da batalha. Na Idade Média o núcleo decisivo dos exércitos era constituído por corpos de mercenários. Antes das batalhas e dos assaltos às cidades, representantes desses corpos discutiam com o senhor da guerra a divisão dos despojos da batalha que iam travar.
A onda de greves de vários corpos do Estado contra o Estado – até juízes – e de sectores estratégicos – transportes (no caso estivadores) – reproduz a mesma velha barganha dos antigos mercenários a propósito da divisão dos despojos antes do assalto, neste caso os despojos que resultarão das próximas eleições e do orçamento que as precede.
Os chefes de corpos sindicais descobriram de repente que, apenas para bem dos cidadãos, sem nada a ver com o imediato das eleições, com política em geral, as suas carreiras têm de ser desbloqueadas, os salários descongelados, isto é aumentados, os horários reduzidos, que faltam recursos aéreos, terrestres e até condimentos nas cozinhas, que pinga a chuva nos soalhos, voam baratas pelos locais de trabalho, sobram buracos nas estradas, os gelados saem fritos, que chegou o momento dos precários integrarem os quadros, das consultas serem de atendimento imediato, dos comboios funcionarem sem maquinistas indispostos com o barulho das rodas nos carris. São senhores doutores médicos, enfermeiros e auxiliares a lutar de seringa nos dentes pelos despojos do serviço nacional de saúde. São tropas, polícias, guardas, ferroviários, professores cada um por si: se há para aqueles porque não há para mim?
A bem do politicamente correto todos e cada um dos corpos sindicais têm razão! Ao assalto!
Nas democracias liberais os cidadãos têm o direito de expressar a luta pelos seus interesses através da organização, da sindicalização, da manifestação e da greve. É a parte boa. Mas esse direito a ser sindicalizado, manifestante, grevista não deve (não devia) estar em conflito com a cidadania, mas muitas vezes está. É a parte má.
A sindicalização, a manifestação e a greve são direitos políticos em concorrência com outros e estão sujeitas à apreciação crítica dos cidadãos, à adesão ou à contestação por parte da comunidade em geral. Não concedem o direito sindical a ter razão, nem à bênção urbi et orbi dos cidadãos.
A sindicalização, a manifestação e a greve não são inerentemente boas e aceitáveis, podem ser más e perigosas. A história revela os resultados dramáticos das ruturas que podem causar no edifício em que nos abrigamos e nos abriga, onde temos que conviver, logo, estabelecer compromissos: o Estado. O Estado pode ser o malvado Estado, mas é indispensável. O que é bom é assegurar um Estado que conceda o direito aos seus cidadãos a serem sindicalizados, a manifestarem-se, a fazerem greve. É prudente utilizar os direitos prevendo os seus efeitos a longo prazo e os seus ricochetes. Não atirar fora o bebé com a água do banho.
Pelo que vemos, em vésperas de orçamento e de eleições, o Estado é um castelo a saquear. Cada corpo procura utilizar as suas melhores armas e os seus campeões para conquistar o melhor dos despojos. Na guerra como na guerra. Ganha mais o mais forte. É uma lei natural, mas pode não dar bons resultados. São muitas as espécies que se extinguiram.
A quem aproveita o saque do Estado? Quem ganha com um Estado saqueado por interesses corporativos e sindicais? Quem fica com o melhor dos despojos do saque? Os sindicatos?
Até agora, como recordava Ricardo Pais Mamede num artigo no DN, referindo as causas da Grande Guerra, a verdade é que têm sido os “mercados” a ganhar com a corrosão do Estado. “Se não houver no campo democrático quem se proponha refrear o fundamentalismo dos mercados mundiais não faltará quem o faça vindo dos lados mais negros que existem nas nossas sociedades.”
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