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Domingo, Novembro 3, 2024

A Quinta

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

As vizinhas, A Ama Helena  e a febre da Tizinha.

Contou a Ama Helena à Tizinha numa noite enluarada em que a menina tinha febre e estava de cama, mas não conseguia sossegar.

A avó Jerónima e a vizinha, a tia Madalena, eram amigas há muitos anos. Viviam ambas na aldeia da Quinta do Avô Vidal, e as casa de ambas eram gémeas. Uma  pintada de rosa a outra de amarelo, ambas com uma soleira da porta que permitia colocar uma cadeirinha baixa onde as duas vizinhas  se sentavam a cavaquear.

A Avó Jerónima tinha três netos. Viúva. O marido, por alcunha o Bate-Solas era, como o nome indica, sapateiro. Criaram os dois filhos com os rendimentos do conserto de tamancos, botas e sapatos de todos os andarilhos da aldeia. É certo que a avó Jerónima ajudava ao sustento da casa com o amanho do quintal e da horta. Até galinheiro tinha e por isso ovos nunca faltaram. Ninhadas e ninhadas de pintainhos nasceram naquela casa e muito alegraram a panela do arroz de frango. As tigelas de canja de galinha, com ovos doirados a boiar, fizeram a alegria do apetite do marido e dos filhos. As alfaces, tomates, couves e batatas, uns pés de feijão e outros de ervilhas, mantiveram a família saudável.

Pelo contrário a tia Madalena, mais nova, não casou. Ao que se sabe_ e na aldeia da Quinta do Avô Vidal, tudo se sabe, o que se não sabe, imagina-se, e depois há um sem fim de adivinhos que quando não sabe nem imagina, deita-se a adivinhar_ a tia Madalena esteve para casar com um rapaz da mesma geração, o Felizardo. Mas o nome esperançoso que os padrinhos lhe deram não trouxe sorte. O Felizardo desapareceu nas guerras da África, sem deixar sinal de vida ou de morte. A tia Madalena nunca pôs luto. Afinal era só prometida e nem anel de noivado chegou a usar. Costurara com carinho alguns lençóis e duas toalhas. O enxoval ficou interrompido quando o telegrama chegou a casa da família do namorado. Houve mais rapazes da aldeia que se foram com a guerra e nunca voltaram. Houve mais noivas que nunca chegaram a usar o véu branco nem as flores de laranjeira.

Quando os pais da Madalena se finaram, ao que diz a Ama Helena, de desgosto pelo acontecido ao futuro genro (cujo destino não fizera jus ao nome), esta ficou a viver na casa da família. De menina Madalena, passou a Tia Madalena, quando o irmão e a cunhada tiveram o casal de gémeos que lhe trouxe enorme alegria à vida, desde então remoçada.

A avó Jerónima um dia chegou com um gatinho branco que depois virou malhado, olhos azuis cor do céu quando o sol brilha de engalanado.

_ Trouxe-te esta prenda que apareceu ali perdida no lugar do peixe. Perdida ou abandonada. Se calhar os donos da mãe gata não se viram capazes de aguentar com a ninhada. Pensei que havias de gostar de uma companhia e os teus sobrinhos vão ficar felizes!

A Tia Madalena olhou o bichinho engelhado de frio, com lágrimas nos cantos dos olhos, narizinho húmido e língua a apontar como pedacinho de fiambre rosado e logo estendeu para ele os braços onde o Malhadinhas se ajeitou fazendo cova no regaço. Estava crismado: o Malhadinhas cresceu muito ufano da bela cauda branca e da pelagem tigrada.

Fez a alegria da criançada. Arisco, teimoso, brincalhão quando estava para aí virado, o Malhadinhas tornou-se conhecido na aldeia  da Quinta do Avô Vidal como um empreendedor da caça aos ratos. Também espreitava os melros que saltitavam no gramado, mas nunca abocanhou nenhum. Um dia chamou a atenção da Tia Madalena por estar estacado, dorso erguido e dentuça arrepanhada. Imóvel e hirto parecia mais assustado do que ameaçador. Quem lhe faria frente? No local do alvoroço a dona Madalena descobriu um pequeno porco-espinho que tinha sido travado pelo felino no seu percurso de fazer pela vida. O Malhadinhas parecia indignado pela intrusão no seu território daquela bola de picos eriçada.

Levando a mão à cabeça,  silenciosa, movimentos cautelosos , a carinhosa Tia Madalena, tirou o lenço que lhe protegia os belos cabelos louros do vento. Dobrou-o bem dobrado e com ele envolveu o ouriço-cacheiro que foi depositar no batatal da vizinha. O Malhadinhas surpreso, mas aliviado, viu o potencial usurpador de território a ser levado para longe do seu arguto olhar.

A Avó Jerónima que vinha a chegar do mercado observou de longe os movimentos da amiga Madalena e viu o lindo cabelo loiro a brilhar ao sol da tarde. Suspirou, pesarosa.

E pensou entristecida:

_ A Madalena nunca mais tirou o lenço da cabeça desde que soube da morte do Felizardo. O cabelo tão bonito, guarda-o só para ela, a trança enrolada como se fora o anel de noivado.

Ilustração: Juanita, de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90



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