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Terça-feira, Julho 16, 2024

A Quinta

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

As novelas do TIDE.

Na sala de jantar havia uma telefonia. E na telefonia passavam os episódios duma novela que deram para um ano de orelhas atentas, presas ao mistério dramático das confusas vidas das pessoas grandes. 

A Tizinha não era admitida a ouvir aquele enredo tenebroso que revelava como as pessoas crescidas, na telefonia, eram muito diferentes das boas pessoas da sua família. Na tal novela, um médico, a que a Ama Helena chamava Passarola, era casado com uma mulher muito má, a que a Ama chamava a Possidónia, mas estava apaixonado por uma linda e pobre Margarida, que era linda mas era coxa.

Na cozinha, depois do jantar dos donos da casa e das meninas, enquanto comiam, e de seguida lavavam e secavam a loiça, a história  da Coxinha do Tide, era a sobremesa que a Helena, a Maria e a Laida não desdenhavam debater e que possivelmente consideravam que faria parte da educação de uma menina que tinha de enfrentar a vida mais cedo ou mais tarde.

avozinha queria conservar a menina numa redoma, mas isso, na cozinha, era considerado uma educação errada. A menina não ia para freira, pois não?

Nesse Inverno a Tia Herminia veio passar uns longos meses lá a casa.

A Tizinha ficava assombrada pela circunstancia invulgar de se darem bem duas senhoras tão diferentes. A ver, a avó tão severa, tão implicativa, nunca satisfeita com nada. Aquela avó sempre metida nas igrejas a ouvir missas consecutivas, sempre a rezar terços e ladainhas, sempre apavorada pela presença de Deus nas trovoadas que eram um castigo que o altíssimo lhe mandava.

Aliás, a Avó era amiga particular desse deus, e declamava com frequência_ “Só eu e Deus é que sabemos”. A Tizinha não percebia onde é que aqueles dois se encontravam!

Chegava a Tia Hermínia e tudo parecia desanuviar. Nem trovoadas havia. A tia era mais velha do que avó, tinha um lindo cabelo branco e na testa alta brilhava um belo caracol desfeito. Também no pescoço, por debaixo do rolo de cabelo muito bem apanhado, dois caracóis estremeciam a cada movimento elegante e perfumado.

Além disso a Tia Hermínia, viúva de longa data, ria muito, e parecia sempre ativa e bem disposta. Contava muitas histórias do tempo em que se casara por amor! E a Avó da Tizinha tolerava estas conversas, habitualmente consideradas proibidas, e até parecia encantada por seguir enredos em que apareciam palavras complicadas como perder um anjinho, ter um desmancho ou estar de esperanças.

O ano da longa história do Tide antecedeu a ida da menina Tizinha para a primeira classe. TIDE, ela aprendeu a soletrar na grande caixa do pó branquíssimo com que se lavava a roupa.

A menina gostava muito do arroz de cabidela da Ama Helena, mas com as tristes histórias da infeliz Margarida coxinha, nunca mais sentiu a tal felicidade quando, à mesa, o Avô Vidal perguntava:

_Queres a coxinha?

A menina passou a responder:

_ Prefiro o peito, Avô, se faz favor.

Foi um ano de grandes acontecimentos. A Tizinha apercebeu-se de que além de ler a palavra TIDE no grande pacote, conseguia ler muitas palavras no jornal e como por milagre, descobriu que conseguia ler histórias muito mais interessantes do que as do médico casado com a mulher má, sempre a suspirar pela sua franguinha de cabidela.

O padrinho, o Sr Guimarães, trouxe-lhe um livro escrito por uma senhora escritora francesa, a Condessa de Segur.

O livro chama-se As meninas exemplares, e o padrinho Guimarães, que cheirava sempre muito bem, até explicou:

_Meninas exemplares como tu!

E o interesse pela coxinha Margarida esfumou-se. Foi a vez de na cozinha, a menina passar a ter também histórias para contar!

 

Ilustração: O Lorgnon da Tia Herminia, de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90



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