A magia dos traços e riscos.
A menina Tizinha via os homens chegarem com os cestos das uvas, ou os cestos de ameixas e, à entrada da tulha, iam fazendo riscos numa ardósia que o Avô Vidal lá colocara.
Os riscos seriam contados ao fim da manhã ou ao fim da tarde conforme a progressão dos trabalhos.
No umbral da porta da cozinha as crianças eram medidas, de costas bem assentes no granito, e um livro era colocado na cabeça muito direita. Depois um risco era traçado e a altura de meninos e meninas estavam registadas. No próximo ano podíamos ter uma ideia de como tínhamos crescido.
A ama Helena colocava na mesa da cozinha os ovos em linha e por cada linha ia uma chávena de chá de farinha para dentro do alguidar. Partia metade dos ovos e as gemas seguiam para um buraco aberto na farinha. As claras iam para outra tigela. Agora os ovos eram metade, e assim seguia igual número de chávenas de açúcar para o dito alguidar, tudo a ser amassado. Acrescentavam-se as claras batidas em castelo enquanto a Tizinha tentava ver as fadas que viviam lá dentro. Untava-se a forma em feitio de coração com manteiga aquecida pelos dedos bem lavados e deitava-se lá dentro a massa. Cobria-se de papel vegetal e ia ao forno a dourar. A Ama apontava para o relógio de cuco:
_ Quando aquele ponteiro maior ficar de pernas para o ar, tiramos o bolo.
As galinhas ficavam com febre, era altura de lhes preparar o cestinho com os ovos escolhidos para elas chocarem. Não se devia incomodá-las. Era preciso que a lua apresentasse três caras diferentes para os pintainhos serem capazes de picar as casca e saírem a cambalear!
A Maria ensinou-me os nomes dos dedos: o mais engraçado era o fura bolos. Mas o mindinho também me fazia rir. Percebi que as mãos tinham tantos dedos como os pés, mas os dedos dos pés eram os únicos que sofriam de cócegas e as piores eram as que o fura bolos da Ama Helena me fazia ao calçar-me as meias. Nas mãos punham-se luvas.
Contar até dez era simples. Uma vaca, dois vitelinhos, três cães, quatro pipas de vinho, e por aí fora até ao mágico dez que se desenhava com dois bonecos. Um pauzinho e uma bola.
E que grande descoberta foi o vinte: um cisne e uma bolinha!
A menina Tizinha não sabia dizer como aprendera a contar, embora isso a Ama Helena e a Maria, que não sabiam ler nem escrever também eram capazes de o fazer. Até os números dos carros elétricos a Maria sabia escolher. Mas o que elas as duas, pessoas grandes, não sabiam, era escrever os números. E quando a menina descobriu que a cada som cabia uma letra e aprendeu a ler, correndo com o dedo fura-bolos as carreirinhas de traços e riscos dos livros de histórias e começou a ser capaz também ela de contar o que estava traçado nas páginas, aí sim, é que foi grande a novidade!
A Maria não queria acreditar.
A menina é tão inteligente-dizia ela à Ama Helena.
E a Tizinha sentia-se feliz!
Ilustração: O Ninho, de Beatriz Lamas Oliveira
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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