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Quarta-feira, Julho 17, 2024

A Quinta

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

A Capela.

Na casa grande da quinta havia uma capela. Havia e ainda há, porque a quinta ainda lá está no mesmo lugar e continua conservada mas silenciosa e vazia. Os móveis tão bonitos foram para leilão, os habitantes mais velhos morreram e os mais novos dispersaram.

Mas, na memória de muitos, a casa grande, corredores, salões, salas, quartos, varandas e capela hão-de estar gravadas. Cada uma destas divisões do andar de cima,conta histórias que são como postais não enviados. O salão luminoso e cheio de um espaço com lareira e a mesa de jogar cartas, onde nos dias da missa anual na capela de São Miguel, era recebido o obeso senhor abade. Vinha oficiar.

A menina Tizinha não gostava do abade. Mas as pessoas grandes não se interessavam nada pelos sentimentos da menina, que era levada ao beija mão e tinha de fazer um enjoativo contacto com as pernas do ministro da igreja, pernas que de tão gordas mais pareciam roscas de pão enfiadas na vassoura áspera da limpeza da cozinha.

Adiante. Ao salão chegava o senhor abade e os dois meninos que acolitavam o serviço solene. Um com o turíbulo, a dar a dar, o outro com a caixinha das hóstias recolhidas no meio das rendas brancas que vestiam aos rapazinhos para os fazerem parecer anjos.

A Tizinha pensava:

– Então os rapazes vestem roupa de menina para parecerem anjos? Melhor seria trazerem meninas de vestido branco e tudo havia de parecer menos um teatro.

Do salão passava-se para a capela, mas por uma outra porta, seguia-se para a sala de jantar e ainda por uma terceira passagem tinha-se acesso à entrada da escadaria de pedra que o abade, a arfar, já tinha subido penosamente, a limpar o suor do rosto vermelhusco e da grande papada que lhe cobria o cabeção desengonçado.

Muitas reverências, outros tantos salamaleques. As empregadas, atarefadas na cozinha a prepararem o almoço que se seguiria à missa, também vinham, afogueadas, cantar as loas ao senhor abade. Logo se retiravam para voltar a meter as mãos nas colheres de pau com que mexiam cabidelas e assados.

Vinham devotas da aldeia. Subiam pelas escadas de pedra de trás, as que davam acesso à cozinha e ao varandão onde se iria almoçar. Era setembro, dia 29, São Miguel, tempo ameno para ainda se poder comer na grande varanda aberta a sul, onde as colunas de granito sustentavam o telhado. E no varandão do almoço uma outra porta dava entrada na capela aos jornaleiros e criados que naquele dia podiam vir à missa do São Miguel, mas não usavam a mesma entrada solene do senhor abade e doutros convidado de mais elevada casta, os que não perdiam nem a missa nem a valente almoçarada.

A menina Tizinha não gostava nem da missa, nem do véu de renda que tinha de usar na cabeça e cujas pontas ia metendo na boca até ficarem encharcadas em saliva. Aquilo tudo lhe parecia ser uma grande confusão sem préstimo para nada. O latinório do senhor abade era motivo para risos irónicos do tio-avô Valdemar que a menina , esse sim, adorava. O Tio Avô fazia-se de novas e escapava à missa com desculpas esfarrapadas que já ninguém lhe pedia. Mas ele dava-as, pensava a menina Tizinha , para se rir de tanta mole beatice decantada.

O Avô, dono da quinta, também não gostava de missas, mas fazia a condescendência de celebrar o São Miguel porque a mulher, a Avó, uma brasileira muito beata, assim entendia que protegeria a casa. Aliás a casa, pelas funções da Avó, era protegida por inúmeros tercinhos e rosários que terminavam numa longa enfiada de nomes de santos à menção dos quais as crianças tinham de salmodiar um ámen, que fazia abrir as bocas em bocejos desalmados.

Os meninos ajoelhados nos genuflexórios de veludo vermelho carmim. Cotovelos no encosto alto e missalzinho nas mãos.

E a Tizinha, também mártir de joelhos fletidos, perguntava-se:

– Não podemos pôr os cotovelos na mesa do almoço, nem na do jantar, e aqui na capela vai de virar as páginas do livrinho de orações como se tivéssemos cotoveleiras do hóquei em patins. Parece-me um erro de etiqueta!

Chegava a bendita hora da almoçarada. A mesa já posta com os linhos e bordados, a louça fina ladeada pelos talheres de prata. Os copos de pé alto, cristal cinzelado.

Agora sim. O senhor abade tirava a gigantesca barriga de misérias. Dizia o tio-avô venerado.

– Mas quais misérias, as do senhor abade? Pensava a menina Tizinha, que olhava os pés descalços e as saias rotas dos caseiros, boné na mão, a afastarem-se, caminha acima, muito esforçados.

 

Ilustração de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


 


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