A prima Ermelinda.
Teria entre os 80 e os 90 anos.
Mais baixa do que a minha irmã mais velha. Seria do meu tamanho. Eu tinha 7 anos. A frágil e graciosa prima Ermelinda parecia uma boneca, toda vestida de negro.
Negra era a touca de seda, onde escondia o crânio desguarnecido. A touca, presa por duas fitas atadas debaixo do queixo de rabeca, faziam-na parecer uma personagem antiga de conto de fadas. A dentadura postiça e desengonçada dava-lhe um riso que não coincidia com a expressão facial. Mas arredondava-lhe a cara.
Tinha sido noviça. Contra vontade. Abandonou o convento. Era a última de uma fratria triste de monjas e abades.
A minha Avó convidava a prima Ermelinda. Para nós uma alegria. Para a minha Avó o fardo da caridade. Vinha no verão, à Quinta. Seria aos domingos, depois da missa.
A roupa da nossa Ermelinda era um fontanário de surpresas_bolsos e bolsinhas pendiam, presos por atilhos de nastro às diferentes camadas de saias e saiotes. Bolsinhas com alfinetes, bolsinhos com missangas, bolsilhos com minúsculos bonecos de cartão com roupa de papel recortada que, em conjunto, formavam um teatrinho. Contas, talvez de rosários partidos, entaladas entre os dedos tão nodosos e finos, transformavam-se em cabeças de velhinha. Depois cobertas por lencinhos de colorido algodão triangular pareciam muito enrugadas. Contava histórias. Histórias de jovens princesas e de lindas fadas. Rendidos, nós escutávamos. E nela, anos e anos de solidão suavam.
A maior festa, para nós, era na mesa. Era um teatro, a toalha de linho fazia de palco e os adereços eram a louça da Vista Alegre, as pratas, as argolas dos guardanapos bordados, os cristais dos copos. Tudo brilhava.
Primeiro, num movimento de mãos de bailarina com castanholas, a dentadura era retirada da boca e alojada no copo da água. Depois, já livre para poder trincar, a Ermelinda ia lançando os negros olhinhos esfomeados, pelas travessas fumegantes.
Um rápido olhar em redor e, vamos lá, a mão fina da prima velhinha recolhia pedacinhos de carne da travessa, e deixava-os cair para um dos entreabertos bolsinhos na cintura fina. Depois engolia alguns pedacinhos do que tinha no prato. Mais uma espiadela em roda e, vamos lá outra vez, mais uma perninha de frango para o regaço.
Só a sobremesa ela comia realmente connosco. Penso que aos doces não resistia.
A minha Avó presidia à mesa. O olhar carregado de censura e contrariedade.
Nós exultávamos. A brincadeira estava a dar bons resultados e podíamos olhar uns para os outros, rindo, entendidos.
A Prima Ermelinda levava para casa algumas vitualhas. As que conseguira acumular nos bolsos. Poder-se-ia falar em vitualhas surripiadas?
Alimentava-se, contava a lenda transmitida pelas conversas da cozinha, de pasteis de carne. Um ao almoço, outro ao jantar. Pasteis de carne das Frigideiras do Cantinho.
Vivia só. Num quartinho. Na cidade. Mas ignoro onde. Nunca a fomos visitar. Pelo menos nós, as crianças.
Houve um verão em que a Prima Ermelinda não chegou nunca mais para almoçar.
Num copo de água na mesa, a dentadura deixou de marcar presença.
E nós ficamos pesarosos. Eu sentia-me culpada.
Mais tarde, nos Cem Anos de Solidão, aprendi com Garcia Marquez como uma boneca humana pode ser multifacetada e até transformar-se em brinquedo de crianças morgadas.
Nós gostávamos da prima Ermelinda e, se éramos cruéis, não nos cabia a responsabilidade da encenação do teatro da caridade.
Ilustração de Beatriz Lamas Oliveira
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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