A cozinha.
Ampla, uma grande janela de vidros enquadrados por madeira pintada de vermelho frente à porta que vai, à direita para o varandão onde se almoça nos dias quentes e à esquerda, seguindo o patamar de granito que em vários lanços dá acesso ao pátio com o tanque de lavar roupa. A entrada de serviço.
A segunda porta enfia-nos corredor adiante, o corredor que dá para muitos quartos.
A cozinha tem cheiros que vão desde a marmelada e a geleia, tigelas e boiões engalanados, até ao rescender dos assados feitos no forno do fogão a lenha, ou à a broa de milho assente em folha de couve a sair do forno do pão. O belo forno que depois se viu abandonado à triste sorte de local para esconder trastes de cozinha, sem préstimo nem data. A portinhola de ferro tudo escondia por detrás.
Numa poltrona já muito gasta imperava a Ama Helena. Quando ela se levantava, o corpo de pluma deixava engastado o seu formato no veludo envelhecido. A Ama Helena usava lenço na cabeça como tinha sido a tradição em Avintes, de onde viera para a cidade, para amamentar a menina da casa.
Já essa menina tinha filhos e era avó, ainda a Ama mantinha o lenço atado ao queixo do que agora parecia uma cabeça de passarinho depenado, embora o rolo de fios brancos e compridos ainda fossem bastantes para formar um nó que prendia com uma travessa de cada lado.
A Ama era a alma da cozinha. Ensinara as outras raparigas a cozinhar pratos delicados de que o “timbale” de galinha era um dos mais afamados. Havia muita gente na casa. Cada um pretendia que o seu prato favorito era o mais refinado. Os ovos verdes, barrigas de freira, pudim de bacalhau a que o Avô Vidal chamava de “betume de bacalhau”, peixinhos da horta, arroz de cabidela, rolo de carne, croquetes, rissóis , pasteis de bacalhau e pataniscas do mesmo, tudo isso permanece em cheiros e sonhos que por vezes chegam, quer numa esquina de uma taberna sombria a servir copos de tinto com um petisco acabado de fritar, quer na sala de jantar de um velho hotel de charme na Rue de Vaugirard.
Ao lado da poltrona, a caixa de costura tinha um variado leque de bric a brac que incluía coleções de botões, fitas e atilhos, cordel enrolado, agulhas de pontear as meias e o famoso ovo de madeira que as crianças tentavam roubar. A Tizinha pedia à Ama:
_ Ensina-me a pontear!
_Tu vais mas é estragar linhas e vai ficar tudo mal amanhado.
_ Então dá-me uma meia mesmo velha para eu poder ensaiar pontos miudinhos.
_ Vá lá. Aqui está uma meia com um buraco para o dedo grande do pé se poder rir à gargalhada.
_ Os meus dedos dos pés nunca se riem, Helena!
_ Tu é que não os ouves, estás a dormir. Mas eu, que estou a dormir na cama ao lado da tua, bem lhes oiço as gargalhadas.
A Tizinha pasmava com o atrevimento dos seus dedos dos pés que assim a denunciavam sem ela ser tida nem achada.
_ Ama Helena: tenho fome, quero lanchar!
_ Pão com marmelada?
_ E se fosse antes aquele pão redondo a que tu tiras a tampa e pões dentro o ovo estrelado?
_ Ai, ai, ai! Então vou agora sujar uma frigideira depois da louça do almoço já toda arrumada? Dás-me cabo do juízo com esses desejos despropositados.
Mas a Tizinha sabia que a Ama se iria levantar, pegar na frigideira pequena, que até parecia de brincar, e havia de fritar o ovo que acabaria por encher a “vianinha” recheada.
_ Agora vê se lá se sujas o bibe com a gema de ovo! Isso deixa nódoas difíceis de tirar e a tua avó logo descobre que andamos a fazer “estravaganzas” pela tarde.
A menina comia com muito jeito e compenetrada do segredo que ambas guardavam.
Desde o dia em que a Ama salvara todos os pintainhos de uma ninhada em que a mãe galinha fora levada pelas febres, que a Tizinha reverenciava os ovos. Bem, a galinha choca tinha morrido e a Ama metera todos os ovos no peito quente e farto e ali os chocara durante uns dias, até que as cascas começaram a partir e os pobres órfãos começaram a sair pelo decote da blusa. A dona da casa mantivera o cenho franzido perante aqueles despautérios que se iam verificando numa cozinha uma pouco fora das normas apalaçadas. Mas neste caso, a resolução da Ama de dar à luz os pintainhos da pobre choca falecida antes do parto, foi mais forte do que a indignação da senhora arrufada!
Ilustração de Beatriz Lamas Oliveira
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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