O misterioso andar de baixo, térreo.
Havia o andar nobre e havia o andar térreo. Neste último, vastíssimo, havia, à esquerda um lagar, o grande compartimento da prensa do vinho e as dornas imensas que pareciam, aos olhos da Tizinha, gordas baleias assentes em gigantescos barrotes de madeira.
Este compartimento dava para o lindo jardim e tinha uma grande porta que só se abria pelas vindimas, ou seja pelo São Miguel, pelos anos da menina. Não por causa do aniversário da menina, claro, mas para os carros de bois poderem descarregar os cestos de uvas.
À direita da entrada havia um quartinho misterioso, pequeno e pobre com uma única janelinha alta, uma cama de ferro com a tinta branca a descair, uma mesa de cabeceira desconjuntada e ao lado uma minúscula retrete. A este quartinho a Tizinha vinha frequentemente espreitar,a ver se descobria quem era, ou teria sido, o misterioso inquilino.
Como nunca encontrou nenhum, foi criando histórias para preencher a lacuna de conhecimento, pois as perguntas que ia fazendo aqui e ali, às pessoas crescidas, sobre a serventia daquele cómodo, nenhuma resposta obtinham. Aqui podia ter vivido escondido o Mascara de Ferro? Teria estado ali alguém prisioneiro nos outros tempos de Dom Miguel? Seria o abrigo de mensageiros das guerras liberais, aquelas que datavam a Carranca? O Avô Vidal e a Ama Helena falavam muito de Dom Pedro e Dom Miguel, porque este último teria dormido ali na Quinta do Anjo na histórica fuga para o porto de Sines. Tanto que lá em cima, no andar nobre, havia e ainda há, o quarto de Dom Miguel, com uma linda cama de pau preto, onde o infante teria dormido.
Um quarto muito pobre e cheio de mistério no andar térreo, e um quarto tão bonito lá em cima.
Um dia a menina descobriu que partindo da despensa da casa,despensa com porta em frente ao quarto do príncipe, tinha havido uma escada de madeira que ligava, pelo interior, os dois andares. Aí a imaginação tomou rédea solta. Teria Dom Miguel uma apaixonada que dormia em baixo,e que o infante visitava durante a noite? Teria Dom Miguel uma ordenança que dormia no quartinho e velava o sono do seu soberano?
Essa escada foi destruída e só sobrava o alçapão que a teria escondido.
Como as pessoas grandes não conversavam com a menina, só os restos de conversas que atravessavam portas e reposteiros podiam ter respostas enquadradas pelos livros que lia.
Mas ainda no andar térreo da casa da Quinta, havia a sala das aguardentes, o espaço da grande balança de fardos e depois a tulha, onde enormes arcas de madeira sólida e bem tratada guardavam milho, feijão, e outros legumes secos que se mediam com as rasas que não tinham as medidas comuns. Alqueire era um simpático nome de origem árabe que correspondia a confusas medidas que estavam ligadas aos burrinhos e às ceiras de transporte de cereais.
Viver entre várias culturas,ter diferentes referencias, ter uma linhagem é ter uma sequência evolutiva com uma linguagem, neste caso, uma linguagem poética que dá pergaminhos intelectuais , que se transformam em privilégios de vivências.
Mas disso a menina Tizinha nada sabia.
O que a ela encantava era descer ou acompanhar o Avô Vidal e ouvir as conversas com os homens que ao ombro traziam os cestos de uvas, escutar os comentários das mulheres que ora se queixavam ora se riam.
A avó brasileira não gostava mesmo nada destas confraternizações entre castas e tentava proibi-las, sub repticiamente tentando chamar a menina à ordem, dizendo-lhe que devia ser “modesta e compostinha”, tentando levá-la ao redil da capela, ao redil da sala de visitas, ao redil do bom comportamento próprio de uma menina distinta.
A menina distinta não queria tocar piano e martelava as teclas com desplante e afinco até o Tio Valdemar dizer: basta de tanto tormento, “ela” não gosta mesmo disto.
A Tizinha confirmava a sua intuição de que tinha nascido no andar térreo e de que era admitida ao andar nobre por confusão durante as guerras liberais , onde no meio de fugas, deserções e outra estropelias, teria talvez tivesse sido concebida no misterioso quartinho.
Ilustração de Beatriz Lamas Oliveira
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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