O Quarto de Dom Miguel.
A Tizinha vivia, metida nos seus pensamentos, na casa da Quinta onde sempre passava os meses de Agosto e Setembro com os avós.
A Ama Helena e a Maria também vinham do Porto, com eles, pois era lá que viviam os outros 10 meses do ano. Primos, primas, amigos também eram convidados. Por vezes os pais também estavam presentes, mas era uma presença fugaz e intermitente.
A menina ia à detestada aula de piano todos os dias, a casa da Dona Clara. A avó argumentava que era para não esquecer as escalas e para manter os dedos afilados!
Morando na aldeia no verão, podia ir a pé, era perto, não havia perigo e o caminho era a direito. Seguia pelo passeio, bordado de casas de um lado e do outro. Todas muito parecidas, diferentes nas cores. Todas tinham uma cancela, um caminho em forma de L até à porta principal. Já os arranjos de flores nos canteiros eram diferentes, pois os vizinhos até parecia que caprichavam a ver qual tinha o mais bonito. Os jardins eram pequenos e à Tizinha parecia-lhe que estas bordaduras de flores e arbustos verdes eram como os laços e fitas com que a Ama lhe enfeitava os cabelos. Isso dava-lhe paciência para ficar quieta enquanto a penteavam e lhe faziam as tranças.
Pelo caminho observava tudo com interesse, pois no Porto, no tempo de aulas, nunca saía sozinha. Aqui as casas tinham apenas um andar, e lá em cima, no telhado, espreitava uma janelinha que todos sabiam que iluminava um sótão. Em todas as casas, a porta ao centro. Depois contava-se uma janela de cada lado.
Naquele ano que recordo agora, o lugar da casa que a Tizinha preferia era o quarto de Dom Miguel. De modo que lá lhe tinham arranjado um grande tapete e almofadões, colocados mesmo por baixo da janela, para aproveitar a luz para ela ler. Até tinha conseguido uma prancheta antiga de desenho e era lá que fazia os trabalhos de casa, ou seja, trabalhos que inventava, pois tinha saudades das explicações do tio Valdemar. A menina sentia-se bem rodeada de cores quentes. As colchas pesadas e espessas que cobriam a cama pareciam-lhe ajudar a abafar o som dos pés a passearem pelo corredor.
Ela lia, e depois era levada por uma maré de pensamentos muito difícil de contar fosse a quem fosse. Não eram segredos, só que ela não conhecia as palavras certas para explicar o que sentia.
Nessas férias de verão, ia com o Avô Vidal à feira, na sede do concelho. Um dia calhou levarem de companhia a Tia Zulmira, a irmã do pai. A feira era grande confusão de gente, conversas cruzadas,e sempre acontecia ser surpreendida por conversas entre adultos das quais, perdia e ouvia palavras, enquanto olhava, confusa, para todos os lados. Por exemplo, nunca tinha esquecido de encontrar e ouvir o Manuel Pedro, antigo aluno da Tia Zulmira, dizer a esta:
_ A nossa aldeia é bonita. Mas a seguir à nossa, na estrada que vai para nascente fica a Aldeia do Colete. Essa é a mais aperaltada de todas aqui do Concelho.
_ A Aldeia do Colete? Nunca tal ouvi. Estás a enganar-me ou a rir-te de mim? _perguntou a professora Zulmira com a Tizinha pela mão.
_ Então, nessa aldeia há casas de um lado só! E até tem um belo restaurante, que é assim a modos que o relógio no bolsinho do colete!
A Tia Zu riu-se e disse ao Manuel Pedro:
_ Tenho saudades de ti nas minhas aulas! Eras a alegria da turma com os teus achados!
A brincadeira do aluno da Tia lembrou à menina Tizinha o coelho da história da Alice no País das Maravilhas. Isso, claro, porque o coelho branco, de cartola, também tinha um relógio a atravessar-lhe a barriga felpuda. Mas será que tinha colete? Sim, tinha colete. Mas o que a menina nunca tinha reparado é que as casas dos botões estão todas do mesmo lado! Aldeia do Colete, que engraçado!
No carro, de regresso da feira com o Avô e a a Tia Zu, ficou sonolenta, foi pensando e sonhando de tal forma que, claro, ignora que adormeceu. Imagina estar deitada nos almofadões do quartinho misterioso lá de baixo,o do andar térreo, com um livro aberto ao lado, e repara num buraquinho aberto na madeira do soalho. Pensa que talvez seja a porta da casinha de um rato. A Mãe e a Avó não gostam desses animais que se conseguem esconder entre as frinchas da madeira antiga. Mas a Tizinha gosta dos ratinhos que têm bigodes bem espetados e olhinhos brilhantes como cabeças de alfinete. Resolve explorar o buraco com o dedo, sem fazer barulho algum e mantendo-se recostada nas almofadas. Sente o dedo a começar a ficar inchado. Quer tirá-lo da porta da casinha do rato, mas agora não é capaz. Se calhar os pêssegos que comeu na feira terão algum efeito mágico e o dedo está a crescer para lhe castigar a curiosidade.
Mas isso seria estranho porque tanto a Ama Helena como a Maria , sempre dizem que a curiosidade é muito importante para explorar a causa das coisas. Portanto, a curiosidade não pode ter consequência má. Talvez não fosse o dedo que estava inchado mas o buraco que estava mais pequeno. Animada por este pensamento, imagina que talvez o buraco na madeira seja, não a porta da casinha de um rato, mas a casa do colete de um gigante invisível que vive prisioneiro no quartinho cá de baixo.
E contente pensa que esclareceu o mistério do habitante do quarto misterioso do andar térreo da Quinta.
Ouve a voz da Tia Zu a chamar: _Acorda menina, estamos chegados.
E a menina, ensonada, ainda resiste:
_Como podia um gigante dormir num quarto tão pequeno!
Ilustração: Um baú de sonhos, de Beatriz Lamas Oliveira
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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