Não é preciso recorrer a este tipo de manipulações, que quando foi anunciada a extinção do SEF, assumiu a forma de emissão do comunicado “SOS racismo aplaude extinção do SEF, herança directa do fascismo” para perceber que a atribuição a um único serviço do acompanhamento de todas as fases do ciclo da imigração foi levando o SEF a concentrar-se num “público” de potenciais indesejáveis, encarados como inimigos, e, por espírito de corpo, a abafar o conhecimento de incidentes, como ficou amplamente demonstrado pelo caso Ihor.
Em 2 de Abril de 2020 surgiu no Público um muito oportuno artigo de opinião de Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, com o título “E se acabássemos com o SEF?”, em que, a propósito do caso Ihor Homenyuk, escrevia:
O alegado homicídio de Ihor, que só veio a ser conhecido duas semanas depois e que conduziu à prisão domiciliária dos três suspeitos, bem como à demissão da direção do SEF, inscreve-se nas inúmeras histórias de humilhação e violência contra imigrantes nas zonas internacionais dos aeroportos portugueses. Neste caso houve uma tentativa de ocultação e manipulação de factos, que pode indiciar habituais contornos de opacidade na atuação do SEF…
… Assim, este caso obriga que se encarem frontalmente as políticas de imigração e se questionem os seus instrumentos de gestão: os EECIT e os CIT são prisões; as zonas internacionais dos aeroportos são, há muito, espaços onde a aplicação do direito e da justiça depende de critérios arbitrários e do poder discricionário de agentes policiais; os pedidos de emissão e renovação de documentos pelos imigrantes são mais expedientes policiais do que atos administrativos, devendo por isso sair da esfera policial nas atribuições do SEF, o que é fundamental para que os imigrantes gozem efetivamente de uma cidadania plena.
Mamadou Ba
Seguia-se, a pretexto de dar a conhecer a “história e a marca genética” do dito SEF um historial dos serviços da administração portuguesa responsáveis pelo controlo de estrangeiros, a partir de 1893, ano em que D. Carlos I cria uma Polícia de Inspecção Administrativa (P.I.A.) que Mamadou Ba qualifica como “pai do SEF” (a P.I.A., não o monarca), passando pela I República, pela ditadura militar, pela fusão em 1933 da Polícia Internacional Portuguesa criada em 1928 e a Polícia de Defesa Política e Social fundem-se na Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE)(i), integrando uma secção internacional, e pela redenominação desta “Pevide” como PIDE, em 1945.
Passando rapidamente o período revolucionário, dá conta da criação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras em 1986 mas com permanência da Guarda Fiscal no controlo das fronteiras até que em 1991 o SEF dotado de novos meios, passa a assegurar competências acrescidas, qual hidra que começa a estender os braços aos imigrantes.
Segui com alguns sorrisos a demonstração de erudição histórica por Mamadou Ba(ii) mas há duas tentativas de manipulação que não posso deixar de assinalar:
A primeira, diz respeito ao período posterior ao 25 de Abril de 1974:
É no período revolucionário de 1974 que esta polícia será efectivamente extinta, sendo então atribuído à Polícia Judiciária o controlo de estrangeiros em território nacional e à Guarda Fiscal a vigilância e fiscalização das fronteiras. Estas atribuições vão sendo alteradas entre o período revolucionário e a consolidação dos serviços públicos do Estado no pós-25 de abril. Em 1976, a DSE é reestruturada, passando a designar-se Serviço de Estrangeiros (SE) e dotado de autonomia administrativa. Dez anos mais tarde, em 1986, nasce o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Apesar de no artigo se reconhecer que a PIDE foi efectivamente extinta e não reciclada ao contrário do que sucedeu noutras quedas de regimes(iii), e de se referir uma primeira atribuição de funções a outras entidades, omite-se que quase de imediato foi esta rectificada, cometendo-se o controlo de estrangeiros ao Comando Geral da Polícia de Segurança Pública e não à Polícia Judiciária(iv) e que a “D.S.E.” que deu lugar em 1976 a um Serviço de Estrangeiros “dotado de autonomia administrativa” e, o que é também omitido, directamente dependente do Ministro, era a Direcção de Serviços de Estrangeiros do Comando-Geral da PSP.
Também seria conveniente que o articulista referisse que no diploma de reestruturação, assinado, entre outros, por Salgado Zenha e por Meneres Pimentel, cujo compromisso com os direitos humanos ninguém põe certamente em causa, se podia ler a final(v):
Nenhuma das disposições deste decreto-lei pode ser interpretada ou aplicada por forma a diminuir as garantias e direitos reconhecidos a favor dos cidadãos estrangeiros pelas convenções e tratados internacionais ratificados pelo Estado Português e pelas leis internas reguladoras dos direitos de asilo, extradição e estatuto do refugiado.
Passando por este período como gato por brasas, o articulista manipula por omissão.
Onde Mamadou Ba mostra toda a sua criatividade manipuladora é quando assimila o espírito da criação do SEF e a sua forma de funcionamento ao da PIDE:
A continuidade histórica entre a doutrina do Estado Novo e os tempos atuais na cultura administrativa de gestão da imigração torna-se óbvia quando, de todos os serviços e organismos policiais contemporâneos, o SEF é aquele que evidencia o maior laço genético com a doutrina policial do Estado Novo pela forma como reciclou a cultura da suspeição e vigilância permanentes, da chantagem e do medo. Tal como a PIDE, o espírito e a prática do SEF, bem como a sua intervenção, baseiam-se na necessidade e/ou invenção de um inimigo, uma ameaça, que justifique, em parte, a sua existência.
Mamadou Ba
Sem procurar defender a memória da felizmente extinta polícia política do Estado Novo, transcreva-se do artigo de Mamadou Ba o seguinte excerto:
…a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), competindo-lhe, entre outras, a responsabilidade dos serviços de emigração e passaportes, o controlo de passagem de fronteiras terrestres, marítimas e aéreas e de passagem e permanência de estrangeiros no país. Neste período coube à PIDE a instrução de processos crime relacionados com a “entrada e permanência ilegal em território nacional, infrações relativas ao regime das passagens de fronteiras, dos crimes de emigração clandestina e aliciamento ilícito de emigrantes e dos crimes contra a segurança interior e exterior do Estado”.
Mamadou Ba
e recorde-se que estavam sobretudo em causa a passagem de fronteiras ao serviço de missões “subversivas” e a emigração clandestina de portugueses para outros países, e não a imigração de outros países para Portugal. O nosso país no tempo da Pide estava longe de ser terra de atracção de imigrantes.
Não é preciso recorrer a este tipo de manipulações, que quando foi anunciada a extinção do SEF, assumiu a forma de emissão do comunicado “SOS racismo aplaude extinção do SEF, herança directa do fascismo” para perceber que a atribuição a um único serviço do acompanhamento de todas as fases do ciclo da imigração foi levando o SEF a concentrar-se num “público” de potenciais indesejáveis, encarados como inimigos, e, por espírito de corpo, a abafar o conhecimento de incidentes, como ficou amplamente demonstrado pelo caso Ihor.
Quando o SEF foi activado não era certamente esta a ideia dos seus dirigentes(vi), aliás em trinta anos muitos funcionários e dirigentes foram sendo formados, foram sendo criadas estruturas sindicais, o Serviço foi obtendo projecção mas sofrendo também crises directivas, a última das quais, grave, resultante do envolvimento, que se verificou não ter fundamento, do seu Director (tanto quanto tenho presente um homem da carreira), no processo dirigido contra o Ministro Miguel Macedo e outros personagens a propósito dos Vistos Gold.
Entretanto outras figuras alinharam na narrativa manipuladora de Mamadou Ba. Veja-se o artigo de opinião de Miguel Romão, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa “Extinguir o SEF é honrar Abril”(vii), que contém várias observações judiciosas sobre a multiplicação de órgãos de polícia criminal, mas onde descabeladamente se fala do regresso do SEF “à sua matriz original de departamento da PIDE/DGS”.
O SEF vai portanto ser extinto, aliás redenominado Serviço de Estrangeiros e Asilo, com os serviços do Ministério da Justiça a receberem parte das suas competências, e verá as suas funções policiais redistribuídas pela PJ (com a qual já realizava operações conjuntas), pela PSP (que já exerceu funções na área) e pela GNR (GNR que absorveu em tempos, recorde-se, a Guarda Fiscal), e o seu pessoal reafectado. Não como consequência do caso Ihor, diz o MAI, estava no Programa do actual Governo. Se não estivesse, digo eu, o ter sido possível um caso Ihor bastaria para o recomendar.
Desejo que tudo corra pelo melhor e que os serviços que herdam as atribuições do SEF não se esqueçam que nalgumas das suas actuais áreas de actividade também se têm suscitado problemas com os “públicos”. Que hoje em dia com uma prolongada crise covid 19 em que a PSP e a GNR com o aparente apoio da opinião pública têm tido de dispersar grupos pela força estarão relativamente esquecidos: o espantoso incidente de Alfragide em que o pessoal da PSP, com os nervos em franja por causa de tensões étnicas, se terá virado contra aqueles que funcionavam como associação de mediadores, o ridículo confronto entre donas de casa no “Bairro Jamaica” no Seixal que fez deslocar para a zona uma viatura da polícia protegida q.b. para lidar com um exército, o vergonhoso episódio da miúda de 8 anos que se esqueceu em casa do passe (gratuito) de autocarro e viu a sua mãe dominada com um golpe de “mata leão” perfeitamente regulamentar (Magina dixit), e levada a “dar uma volta” num carro da polícia.
Mas enquanto houver fronteiras nem a extinção do SEF pacificará Mamadou Ba:
A mobilidade humana arreiga-se na liberdade de circulação e, num mundo globalizado de circulação de capitais e mercadorias, continuar a erguer muros físicos e simbólicos contra pessoas que produzem estas riquezas, submetendo-os à seleção e ao acantonamento, é inaceitável.
Mamadou Ba
Pelo que qualquer serviço que aplique restrições à liberdade de circulação entre países será, muito provavelmente, qualificado de filho do SEF e neto da Pide/DGS.
Notas
(i) Mamadou Ba refere-se à PVDE como “antecâmara” da PIDE, mas não à redenominação desta em DGS, convenho que de reduzido impacto real. A PIDE parece ser portanto um estádio de perfeição inatingível dentro da evolução estudada.
(ii) Erudição que poderia ser reforçada com a leitura da Batalha de Sombras de Rocha Martins de forma a que o articulista ficasse a perceber como é que nos tempos do Primeiro Cônsul Napoleão Bonaparte o intendente Pina Manique controlava os estrangeiros, designadamente franceses, e os portugueses seus simpatizantes em Lisboa, servindo-se dos seus “moscardos”, dos serviços das alfândegas e de outros instrumentos.
(iii) E a prevista reorganização nas frentes de guerra como polícia de informação militar fez temer.
(iv) Decretos-Lei nº 171/4, de 25 de Abril (rectificado pelo Decreto – Lei nº 214/74 , de 22 de Maio), nº 215/74, de 22 de Maio e nº 651/74 , de 22 de Novembro.
(v) Decreto-Lei nº 494-A/76, de 23 de Junho, aprovado já no final do VI Governo Provisório.
(vi) Mantive um breve contacto em 1990 com Teresa Caupers, na altura subdirectora do SEF e cheguei a leccionar noções de Administração Financeira aos primeiros “inspectores” e “inspectores-adjuntos” seleccionados para o Serviço.
(vii) Diário de Notícias de 23 de Abril de 2021. Extinguir o SEF é honrar Abril