Diário
Director

Independente
João de Sousa

Sexta-feira, Novembro 22, 2024

A Revista de Contabilidade Pública

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

O ano de 2023 assistiu à publicação de História da Contabilidade Portuguesa – O Século XX da autoria de Miguel Gonçalves, Márcia Simões, Raquel Ferreira, Cristina Góis(i), trabalho premiado com o Prémio de História da Contabilidade “Martim Noel Monteiro” edição de 2022, no âmbito da APOTEC – Associação Portuguesa de Técnicos de Contabilidade, cuja Presidente- Isabel Cipriano assina um prefácio em que chama a atenção para a metodologia seguida pelos autores, que identificam os “75 mais importantes acontecimentos contabilísticos do século XX” a “cinco níveis: associativo, ensino, literatura, normalização contabilística e profissão”, tendo tido o cuidado de os contextualizarem política, económica e socialmente. O seu trabalho não pode deixar de ser relacionado com o Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra – ISCAC / Coimbra Business School, do qual Miguel Gonçalves e Cristina Góis são Professores, como se comprova pelo posfácio de Alexandre Gomes da Silva como Presidente do ISCAC e pelas numerosas referências a outros trabalhos no final do livro, entre as quais me chamaram a atenção uma de 2010: “Entrada da contabilidade no ensino superior em Portugal” e outra de 2017 “Síntese cronológica sobre a contabilidade pública em Portugal, seu passado, presente e futuro (1222-2016): revisão da literatura”.

Na capa do livro figura Luca Pacioli, que, explica-nos o livro no Acontecimento 1929 – A Voz do Comércio, Tema ”Literatura”, não foi o inventor do método das partidas dobradas, mas quem o divulgou pela primeira vez em sede de um livro impresso. O meu propósito no presente artigo é tratar o Acontecimento 1940: Revista de Contabilidade Pública, Tema: Literatura.

A Revista de Contabilidade Pública começa a publicar-se a partir de 1940, tendo saído 18 números:

  •  4 de 1940 (Ano I, nºs 1 a 4), 4 de 1941(Ano II, nºs 5 a 8) , 4 de 1942 (Ano III, nºs 9 a 12), 4 de 1943 (Ano IV, nºs 13 a 16), 1 de 1944 (Ano V, nº 17) e 1 de 1945 (Número especial);
  • só os números de 1941, 1942 e 1943 têm a indicação dos meses a que se referem (Janeiro a Março, etc.), o que talvez decorra de inicialmente os responsáveis pela Revista terem acalentado a hipótese de a receptividade que viessem a encontrar permitir a passagem da revista a mensal a partir do terceiro número; no mesmo contexto se fixou o preço de cada número em 5 escudos, valor que se vem a manter até ao final;
  • todos os números têm a indicação de que foram Visados pela Comissão de Censura, estando na altura as Revistas sujeitas à censura prévia;
  • a Redacção e Administração (sede provisória) situa-se, como Aureliano Felismino indicou num dos seus textos já como Director-Geral, na sua residência, ou seja na Rua do Arco do Cego, 71 – 2º, Lisboa, passando a partir do nº 8 (Outubro-Dezembro de 1941) para a Rua de Santa Marta, 61, Lisboa, sede da Direcção-Geral da Contabilidade Pública (DGCP);
  • a partir do nº 11 (Julho a Setembro de 1942) é indicado ser a Revista propriedade da “Sociedade Editora da Revista de Contabilidade Pública, Lda”;
  • quase desde o início a Revista, que não indica a tiragem mas afirma ter os seus leitores disseminados por muitos serviços públicos, insere publicidade, designadamente de equipamentos de escritório;
  • a composição e impressão estiveram sempre a cargo da Bertrand (Irmãos), Lda.
  • o “Corpo Directivo” tem sempre a mesma composição: Albertino Marques, Aureliano Felismino, Carlos Ivo de Carvalho e Darwin de Vasconcelos, e aparece ordenado por ordem alfabética:
  • Albertino Marques figura como Editor em todos os números;
  • a partir do nº 7 (Julho-Setembro de 1941) figura também como “Director responsável” Aureliano Felismino;

A estrutura dos diversos números da Revista ficou mais ou menos fixada como segue:

  • algumas palavras iniciais, em textos não assinados, dos quais alguns, mas nem todos, parecem, quer pelo estilo quer por referências factuais, ser da autoria de Aureliano Felismino;
  • uma “parte especulativa”, integrada por textos de opinião; sobre questões de ordem científica ou profissional;
  • uma rubrica “Panorama”, dando notícias ou comentando acontecimentos;
  • colaborações de Professores, designadamente do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF);
  • referências a circulares e pareceres da DGCP;
  • fichas de legislação.

A partir de certa altura torna-se necessário explicar que a ordem pela qual os textos aparecem na Revista se deve apenas a critérios editoriais.

Manda uma preocupação de rigorosa exactidão deixar claro que a Revista se foi atrasando quer por contingências da Guerra – e consequente falta de papel para a sua impressão – quer por sobrecarga de trabalho profissional – o seu Director Aureliano Felismino ascendera em meados de 1943 a Adjunto do Director-Geral – de onde o nº 17, de 1944, se ter resumido à recuperação de atrasos nas referências a circulares e pareceres e na elaboração de fichas de legislação e ter sido publicado em 1945, próximo do número especial que celebrou os 30 anos de António José Malheiro como Director-Geral.

Qual a posição profissional dos membros do Corpo Directivo durante o período de publicação da Revista? A Revista não os identifica por categorias detidas na Direcção-Geral, de forma que foi necessário recorrer a outras fontes:

  • Albertino Marques entra como aspirante em 14 de Dezembro de 1931, passa a terceiro oficial em 28 de Março de 1934, a segundo oficial em 13 de Maio de 1937, a primeiro oficial em 28 de Agosto de 1938, a chefe de secção em 30 de Setembro de 1942; ascenderá a Chefe de Repartição em 2 de Novembro de 1955;
  • Aureliano dos Anjos Felismino entra como aspirante em 9 de Julho de 1931, passa a terceiro oficial em 29 de Março de 1934, a primeiro oficial em 28 de Setembro de 1938, a chefe de secção em 8 de Setembro de 1939; publicara em 1936 uns Apontamentos de Contabilidade Pública, e preparava um novo volume com Novos Apontamentos; tomou posse como Adjunto do Director-Geral em 6 de Julho de 1943, em lugar criado nesse mesmo ano por decreto-lei, e que poderia ser preenchido por um Chefe de Repartição, categoria que Felismino não detinha, ou por um chefe de secção licenciado em ciências económicas e financeiras, como era na altura o seu caso; é verosímil que a criação do lugar tenha tido em conta a saúde periclitante do Director-Geral António José Malheiro e que a condição de acesso correspondesse intencionalmente à situação do então chefe de secção;
  • Darwin Maximiano de Vasconcelos entra como aspirante em 9 de Julho de 1931, passa a terceiro oficial em 28 de Julho de 1934, a segundo oficial em 13 de Maio de 1937, a primeiro oficial em 28 de Setembro de 1938 e a chefe de secção em 8 de Setembro de 1939; ascenderá a Chefe de Repartição em 26 de Maio de 1949;
  • Carlos Romero Ivo de Carvalho entra como aspirante em 22 de Setembro de 1930, passa a terceiro oficial em 28 de Março de 1934, directamente a primeiro oficial a 6 de Outubro de 1938, e a chefe de secção em 4 de Agosto de 1942; ascenderá a chefe de repartição em 22 de Agosto de 1947.

Portanto trata-se de gente que ingressou na DGCP em 1930 ou 1931 quando esta se começa a abrir a novas candidaturas posteriormente à Reforma da Contabilidade de 1930 e que ingressa na situação precária de aspirante por, no rescaldo da Reforma Orçamental de 1928, se colocar a hipótese de redução de efectivos a partir do momento em que os funcionários da DGCP concluíssem a elaboração das Contas Gerais do Estado em atraso.

Quais dos quatro seriam licenciados? Os lugares da carreira podiam na altura ser preenchidos tanto por licenciados como por não licenciados e muito raramente a documentação fazia tal distinção. Presumimos que, tal como Aureliano Felismino, Carlos Ivo de Carvalho seja licenciado pois que, tal como ele, por expressa disposição da lei, teve a possibilidade de concorrer directamente de terceiro oficial a primeiro oficial. Darwin de Vasconcelos é referido como “Dr.” na notícia que a Revista publica sobre a tomada de posse de Aureliano Felismino como Adjunto do Director-Geral na qual Albertino Marques usa da palavra em nome do Corpo Directivo da Revista, sendo de notar que este é o que atinge mais tarde a categoria de Chefe de Repartição. E quais terão sido condiscípulos de Felismino no ISCEF? O Regulamento Geral de Protecção de Dados guarda ciosamente esta informação sensível.

Tanto Aureliano Felismino como os seus três colegas publicam artigos na Revista, sendo que no caso de Darwin de Vasconcelos um texto seu terá sido divulgado como separata, não fazendo parte da colecção de números consultável na Biblioteca Central do Ministério das Finanças(iii).

Aureliano Felismino assina “O problema das reposições”, “Conceito de Contabilidade Pública (Arrecadar-Gastar)”, “Nova mentalidade”, “Gastar-Poupar”, “Administração Pública”, “Onde acaba a Ciência das Finanças para começar a Contabilidade Pública”(iv), e “Alguns pequenos temas da profissão” em tom de colóquio com um suposto leitor em que o já adjunto de Director-Geral assina somente “F.”

Para além da publicação de ““Modernas Tendências da Contabilidade Pública” (comunicação dirigida à Sociedade de Ciências Económicas em 30 de Novembro de 1943 pelo sócio efectivo Aureliano Felismino)“ que é feita no número 16, relativo ao último trimestre de 1943, que sai já em 1944.

Já discuti esta comunicação no meu trabalho A Intendência – Geral do Orçamento – História de um Organismo que nunca existiu (1929-1996) e em artigo publicado aqui em 16 de Fevereiro de 2022 1938: Salazar deixa cair a Intendência-Geral do Orçamento. Justifica-se também chamar a atenção para o artigo que tenta delimitar Ciência das Finanças e Contabilidade Pública assinado por alguém que sempre incluiu na Contabilidade Pública o corpo de princípios e regras de execução orçamental.

Outros colegas da DGCP publicam na Revista, como Henrique Daries Louro, Aurélio Guilherme Serra Ferreira, Carlos Libório Barros, Virgílio Rodrigues. São também solicitados artigos a funcionários da Direcção-Geral da Fazenda Pública(v), designadamente sobre património e fluxos financeiros conexos com a execução do orçamento, tendo o Director-Geral António Luíz Gomes, escrito um breve texto de elogio à Revista de Contabilidade Pública: “O papel da Revista de Contabilidade Pública como instrumento de trabalho dos funcionários e auxiliar da Administração”, que será publicado no seu nº 6. Também Joaquim Delgado, chefe de secção da Direcção-Geral do Tribunal de Contas aparece, com outros colegas, a escrever na Revista, ecoando com um artigo “Mentalidade Nova” o artigo “Nova Mentalidade” de Felismino, e assinando uma série de textos sobre provimento de cargos públicos. Já tinha encontrado o seu nome, enquanto Chefe da 1 ª Repartição da Direcção-Geral do Tribunal de Contas, na composição da Comissão Central de Inquérito de Estudo e Eficiência dos Serviços Públicos, criada pelo Decreto nº 38 503, de 12 de Novembro de 1951.

O que o próprio António José Malheiro, Director-Geral da Contabilidade Pública pensava da Revista encontramo-lo publicado no nº 11, talvez em correspondência com informação ao Ministro João Pinto da Costa Leite (Lumbrales), que veio a conceder um subsídio à Revista, à qual também foi concedida isenção de Contribuição Industrial.

No que diz respeito aos Professores do ISCEF foram publicados no nº 1 textos de José Eugénio Dias Ferreira (“A remodelação do Imposto sobre as terras”), de Vitorino Guimarães (“Fixação das despesas públicas (apontamentos para um curso de Contabilidade Pública)”, que não sabemos se terão sido publicados no Instituto. Do nº 6 ao nº 16 vai sendo publicado um trabalho assinado por Vitorino Guimarães intitulado “Contabilidade Pública – Sua origem e evolução em Portugal” (não o localizei no catálogo da Biblioteca do actual ISEG). No nº 6 surge o texto “Duas palavras de homenagem” em que Armando Marques Guedes faz um elogio ao Director-Geral António José Malheiro, essencialmente evocativo do tempo em que, quando foi Ministro das Finanças, o teve sob as suas ordens, mas apesar do que a Revista deixou entrever, não surgirão novos textos.

Dias Ferreira foi o doutorando em Direito de Coimbra cuja reprovação nas provas de 1907 deu origem à crise académica já aqui descrita e terá estado ligado ao Partido Republicano Radical. Marques Guedes foi o último Ministro das Finanças da I República num Governo do Partido Democrático, sendo elogiado por todos, incluindo Franco Nogueira no seu Salazar. Vitorino Guimarães, Ministro das Finanças em vários Governos da I República, chegou a ser Presidente do Ministério. Posteriormente ao 28 de Maio de 1926Terá assinado o aviso às entidades estrangeiras de que só o dissolvido Congresso poderia autorizar o recurso a empréstimos externos. Aureliano Felismino mantinha boas relações com os seus antigos professores e com o Director do ISCEF, Moses Amzalak, que esteve na sua tomada de posse como Adjunto do Director-Geral.

O nº 14 da Revista insere o artigo “O Banco de Portugal e as suas relações com o Tesouro” de António Pedroso Pimenta, Professor do Instituto Comercial de Lisboa, que será em 1945 um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Contabilidade(vi).

A Revista de Contabilidade Pública teve um insucesso marcante quando tentou, com larga publicidade, organizar um concurso de trabalhos de contabilidade pública para o qual, apesar do alargamento de prazo, poucos candidatos enviaram trabalhos. Aureliano Felismino tentou manter a porta aberta para a retomada do projecto da Revista, quando conseguiu que o Governo em 1945 aprovasse a criação do Gabinete de Estudos António José Malheiro, de que um dos fins era “promover, entre os funcionários da Direcção-Geral da Contabilidade Pública, a elaboração de trabalhos da especialidade que poderão ser publicados na ‘Revista de Contabilidade Pública’ ou constituir cadernos de divulgação a editar e a distribuir pelo próprio Gabinete”. Foi gerindo a Direcção-Geral e o Gabinete por forma a que este produzisse, editasse e distribuído numerosos trabalhos. Mas apesar dos apelos que foi repetindo nos quase trinta anos seguintes, nunca se apresentou outra equipa para tomar conta do projecto da Revista e utilizar as dotações inscritas para esse efeito. As circunstâncias que haviam levado ao seu aparecimento eram irrepetíveis.

 

Notas

(i) Edições Almedina.

(ii) Parece um Decreto-Lei com “fotografia”, mas Aureliano Felismino quando em 1947 ascendeu a Director-Geral e teve a possibilidade de indicar os seus adjuntos também não recorreu a Chefes de Repartição, aliás o Adjunto de Director-Geral vencia na altura como Chefe de Repartição.

(iii) Segundo o catálogo da Biblioteca Nacional, alguns dos números da colecção desta não estarão em bom estado.

(iv) Revista de Contabilidade Pública, nº 11

(v) Corresponde à actual Direcção-Geral do Tesouro e Finanças.

(vi) E para a importância de cuja acção Miguel Gonçalves me chamou oportunamente a atenção.

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -