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João de Sousa

Sábado, Novembro 2, 2024

A Revolução Cultural em Curso

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

O assassínio a sangue frio de um cidadão de Mineápolis, pela polícia local, com requintes de sadismo, gravada em vídeo difundido por todas as redes sociais, emocionou a justo título a opinião pública humanista e democrática dos EUA e do mundo inteiro e serviu para que todos ganhemos consciência da necessidade de profunda reforma dos mecanismos de direito, segurança e justiça existentes nas sociedades democráticas em geral e na americana em particular.

  1. Os males das sociedades democráticas

Espero que haja maturidade, conhecimento e bom senso para se fazer a completa radiografia do fenómeno e que esta possa ser devidamente entendida pela opinião pública e os poderes em geral, sendo que, verdade seja dita, há até hoje poucos indícios de que isso esteja a acontecer.

Para já, o que creio ser dever de todos nós anotar é que é demagógico ver o crime de Mineápolis como algo exclusivo da sociedade americana. Para não irmos mais longe, lembremos o assassínio no aeroporto de Lisboa, de forma igualmente sádica, pela nossa polícia de fronteiras de um cidadão empresário ucraniano que resolveu entrar na zona Schengen por Lisboa.

A primeira grande diferença entre os dois casos é a de não existir vídeo no assassínio de Lisboa, e na nossa sociedade de espectáculo faz fé a lógica do Dr. Salazar ‘em política, o que parece é’ ou seja, só importa o assassínio se houver imagens e de preferência chocantes; se se puder matar em quantidade longe das câmaras, não há crise.

É chocante que nem uma manifestação se tenha feito a protestar contra o racismo assassino de agentes policiais portugueses, que as poucas medidas tomadas o tenham sido por pressão da nossa administração da justiça, e que ninguém tenha entendido a necessidade de profunda reflexão sobre o que levou o nosso país a tornar coisas destas possíveis e os meios de evitar que se repitam.

O que é singular é a maior e mais espontânea manifestação dos últimos tempos em Portugal ter sido feita para protestar contra um crime em tudo semelhante, mas passado noutro país onde inúmeros protestos tiveram lugar. Demagógico é igualmente resumir a questão a um problema de cor da pele; sendo verdade que essa forma primária de racismo é a mais corrente, o problema de forma alguma se pode resumir a ele, como se pode constatar pela cor do cidadão ucraniano assassinado, mais clara do que a cor da generalidade dos portugueses.

A demagogia – forma comum da degeneração dos sistemas democráticos – é o que levou a sociedade a fechar os olhos ao crime feito em nome do combate à invasão de emigrantes ou ao pequeno furto ou desacato.

É igualmente a demagogia o que leva a sociedade americana e a opinião pública internacional a culpar a administração nacional republicana por um crime cometido num país de poder descentralizado em que todos os responsáveis políticos e administrativos de Mineápolis são do Partido Democrático, e isto é assim quer com as autoridades que controlam a polícia como as que ignoraram inúmeras queixas anteriores contra actos gratuitos de violência perpetrados pelos polícias responsáveis pelo assassínio.

Mas a demagogia suprema é deixar que dirigentes do Jihadismo e de outros sistemas totalitários se armem nos justiceiros de Mineápolis e que os manifestantes abram os braços às suas prédicas e aceitem silenciar os crimes cometidos de forma muito mais sistemática nos países submetidos aos seus regimes totalitários.

  1. Relembrar a revolução cultural

Tudo isto lembra necessariamente a ‘Revolução Cultural’, genocídio das elites de um país levado a cabo por um dos mais sanguinários ditadores do século XX, e que passou nesse tempo por ser símbolo da libertação da opressão burguesa e capitalista.

Graças aos trabalhos do recém-falecido sinólogo Simon Leys, que passou o auge da revolução cultural em Hong Kong a entrevistar sobreviventes chineses, e a ver os cadáveres de alguns que não tiveram a sorte de fugir a descer pelo Rio das Pérolas – experiência que lhe permitiu escrever dos livros mais importantes para se entender a realidade chinesa – sabemos hoje o que foi a revolução cultural: o genocídio da intelectualidade chinesa feito com o propósito de não permitir a contestação consistente do totalitarismo comunista chinês e do seu dirigente primeiro.

Do ponto de vista ocidental, o que houve de mais interessante nesta revolução cultural chinesa é ela ter sido contemporânea das grandes manifestações ocidentais simbolizadas no ‘Maio de 1968’ mas que caracterizaram grosso modo a década 1965-1975 e, suprema aberração; os mais radicais contestatários das democracias terem desenvolvido a luta em nome da ‘Revolução Cultural Chinesa’ que conduziria supostamente à libertação universal do homem dos males capitalistas, racistas e imperialistas (e revisionistas, epíteto reservado ao comunismo soviético julgado insuficientemente sanguinário).

Igualmente digno de nota – e algo de que só me dei conta plenamente por ocasião da morte de Simon Leys que me levou a estudar a sua biografia – é que o maoísmo foi tacitamente promovido pelos dirigentes ocidentais (americanos, franceses ou britânicos) sob a lógica perversa de que a disputa maoista à União Soviética servia os interesses ocidentais.

Estamos neste momento a assistir a uma reprodução histórica dos acontecimentos de há meio século com quatro importantes agravantes:

  1. Tivemos tempo e oportunidade para entender o logro de que fomos vítimas há meio século, mas aparentemente, nada aprendemos com a história;
  2. Vivemos hoje em Portugal em regime de liberdade e se não acreditamos na verdade mas sim na fantasia, a responsabilidade é inteiramente nossa;
  3. Se o maoismo se deu ao trabalho de pintar a realidade de cor-de-rosa, não podemos invocar sequer isso por parte dos dirigentes jihadistas, que alardeiam as suas convicções fascistas e retrógradas sem qualquer disfarce;
  4. Há meio século havia o argumento do perigo soviético que fazia do maoismo um inimigo do inimigo, contemporaneamente, tentou-se fazer o inverso com o ISIS (que seria inimigo dos comunistas e outros grupos jihadistas rivais) mas agora, nem isso existe para justificar o apaziguamento.

 

  1. O fantasma de Jim Jones

Uma das muitas imagens que me passou pelos olhos relativa às actuais manifestações a propósito do assassinato de George Floyd, e que infelizmente não consigo reencontrar, foi a de um jovem com ar profundamente deprimido que pedia desculpa por uma meia dúzia de coisas, as duas primeiras sendo a de ser homem e ser branco.

Se é salutar termos um sentido autocrítico, o espírito destas manifestações vai muito para além disso e transformou-se já num instinto plenamente suicidário em que a identidade é rejeitada em bloco.

Trata-se do espírito Jim Jones, que evoluiu de um cívico antirracismo para uma militância comunista e daí para dirigente de seita religiosa, tendo acabado por assassinar um grupo de pessoas incluindo um congressista americano e orquestrar um suicídio em massa que causou mais de novecentas vítimas.

Jim Jones é naturalmente um caso extremo de rejeição absoluta da identidade e a maioria não chegará a esse extremo, mas a realidade é que é nessa lógica que se encontram.

E se a sociedade portuguesa, por ora, se sente agredida pela vandalização da estátua do Padre António Vieira, e vê justamente no acto o mesmo espírito que o dinamitar dos budas pelos Taliban, é bom que se prepare para o que aí vem e que será seguramente mais violento, fanático e destrutivo e não se ficará pela destruição de imagens.

E se quer prevenir esse fenómeno, tem então de preparar análises equilibradas e não demagógicas dos factos, reformas profundas para que eles não se repitam, e tudo isto sem qualquer transigência com o niilismo e menos ainda com a manipulação por ditadores ou com relativismos culturais.


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