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Sexta-feira, Janeiro 31, 2025

A ruína do edifício social

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

Algo que parece já garantido é que “a crise Covid” em que estamos mergulhados, está a agravar as perspectivas de longo prazo das populações, tanto mais que sentimos já isso desde 2008 e do eclodir da crise sistémica global.

A constante referência ao elevado número de mortes, de falências e de outros dramas, que expressam as grandes perturbações, de natureza pessoal ou colectiva, em todos os sectores de actividade, têm sido amplamente agravadas pela ausência de respostas eficazes à calamidade e estarão na base da crescente impaciência de um retorno, o mais rápido possível, à ordem anterior das coisas, ou seja, a um mundo onde o dinheiro continue a traduzir o grau exacto de liberdade que todos, homens ou mulheres, jovens ou velhos, podem esperar. As vozes mais ousadas que aqui ou ali chegam a exigir o melhoramento de salários, pensões e carreiras, não parecem expressar mais que a vontade de reencontrar o nível de crescimento e consumo anteriores e, portanto, a continuação do modo de vida que o mundo ocidental adoptou por instigação dos grandes interesses financeiros e das elites políticas que deles dependem.

Nas poucas ocasiões em que surgem expressas algumas ideias mais radicais, mais definidas ou com conceitos mais nítidos, é visível a relutância na apresentação de conclusões que comprometam seriamente a lógica da omnipotência do factor capital ou nem sequer lhes é concedido espaço de divulgação. Nesta crise, como nas anteriores, a gravidade da situação e a dimensão do choque deveriam levar a que a lógica capitalista/financista fosse directamente posta em causa, mas o que habitualmente tem acontecido é como se ninguém fosse capaz de perceber além das origens próximas da crise – se agora é um acontecimento de natureza sanitária, em 2008 foi a completa falência do modelo de alavancagem financeira – e de ponderar e propor soluções alternativas.

A crescente mercantilização da cultura – quer a que se expressa na criação cultural “stricto sensu”, a que resulta dos modelos de acesso aos níveis de ensino superior ou a de uma comunicação social cada vez mais dependente de interesses económicos – tem vindo a reduzir a capacidade de intervenção colectiva nas questões de organização social, anestesiando as consciências e as capacidades de organização e mobilização de uma classe média em estado de decomposição, anestesiada nos seus valores e esquecida da sua própria história.

É esta sociedade irremediavelmente desigual que se propõe como meta para um futuro com que todos parecem concordar, mesmo aqueles que julgam, ou dizem julgar, que as dificuldades serão facilmente resolvidas mediante reformas adequadas, quando as reformas que os temos visto aplicar nas últimas décadas foram as que permitiram e aceleraram o processo de concentração da riqueza de poucos a expensas do bem-estar da larga maioria. Por que as únicas reformas aceites pela facção do capital financeiro são as que assegurem a manutenção das suas elevadas taxas de lucro e que acelerem o processo de concentração da riqueza, a saber: a desindustrialização, a deslocalização da produção, a redução dos salários, a degradação dos serviços públicos, a prática de dumping social, evasão fiscal e demais fraudes económicas.

A “crise Covid”, a segunda de proporções globais que enfrentamos neste século, a ser encarada como o foram as anteriores – mediante recurso ao habitual receituário neoliberal que ignora o facto da actual estrutura social estar económica, política e moralmente arruinada e a precisar de ser completamente reformulada –, resultará em novo agravamento das condições de vida da generalidade das populações e no reforço da concentração da riqueza, só podendo ser considerada como solução por quem de evidente má-fé a pretenda aplicar em benefício dos mais favorecidos de sempre ou alimente a espúria expectativa de esperar um resultado diferente da repetição do erro anterior.


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