No 20º ano da Semana de Arte Moderna de 1922, o guru do modernismo não poupou críticas.
Numa carta de 5 de junho de 1942, dirigida ao maestro Francisco Mignone, Mário de Andrade, faz uma autocrítica severa da Semana da Arte Moderna, ocorrida 20 anos antes. Nela, o guru do modernismo antecipa algumas teses que apresentaria na conferência que pronunciou, no dia seguinte, na Faculdade de Direito de São Paulo para marcar o aniversário daquele evento.
Publicamos abaixo alguns trechos da célebre Conferência Sobre o Modernismo, bem como da carta a Mignone que, hoje, faz parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo.
Desarvorado
No domingo tomei com um golpe de ar na carequinha e me veio de sopetão uma tosse danada, que de tamanha não me deixou trabalhar na segunda e na terça me pôs de cama. Hoje foi o primeiro dia que senti um bocado de milhora, milhora assombrada e desejadíssima porque amanhã tenho que fazer a minha conferência sobre o Movimento Modernista na Faculdade de Direito daqui. E agora vai a troca do que você me falou na sua carta: ah! como eu desejava que vocês estivessem aqui comigo pra me sustentar. Estou um pouco desarvorado e não sei o que vai ser. Muitos estudantes daquela incrível faculdade ainda estão muito zangadinhos com o que eu falei deles e da mentalidade deles na Elegia de Abril. E são gente barulhenta, que gosta de fazer barulho. E além disso a conferência ataca direto certos ideais políticos que ainda têm muitos partidários naquela incredibilíssima faculdade. Não sei o que vai ser, me sinto um pouco desamparado, queria vocês comigo aqui, estou sentindo precisão de vocês. Mas é triste êstes quinhentos quilômetros de lonjura. E solidão”.
Sem o Modernismo
Logo de cara, Mário de Andrade surpreendeu a plateia ao anunciar que “tudo quanto fez o movimento modernista far-se-ia da mesma forma sem o movimento”.
Aristocracia do espírito
elo seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua gratuidade anti-popular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia do espírito…” E diz que o movimento foi essencialmente destruidor. “Até destruidor de nós mesmos, porque o pragmatismo das pesquisas sempre enfraqueceu a liberdade de criação”. “Enquanto nós, os modernistas de São Paulo, tínhamos incontestavelmente uma repercussão nacional, eramos os bodes expiatórios dos passadistas, mas ao mesmo tempo o Senhor do Bonfim dos novos do país todo.”
Língua brasileira
Inventou-se do dia pra noite a fabulosíssima língua brasileira. Mas ainda era cedo; e a força dos elementos contrários, principalmente a ausência de órgãos científicos adequados, reduziu tudo a manifestações individuais”
Liberdade de pesquisa
Quanto à conquista do direito permanente de pesquisa estética, creio não ser possível qualquer contradição: é a vitória grande do movimento no campo da arte.”
Aristocratismo
Meu aristocracismo me puniu. Minhas intenções me enganaram. Tudo o que fiz foi especialmente uma cilada da minha felicidade pessoal e da festa em que vivemos.”
Marchem com as multidões
Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase integralmente política da humanidade. Nunca jamais ele foi tão momentâneo como agora. Os abstencionismos e os valores eternos podem ficar pra depois. E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade”. Ao fim da fala, Mário de Andrade conclamou os estupefatos estudantes: “Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões”.
Texto em português do Brasil