Que política cultural é esta que vulnera o que já é frágil? Parece que a fragilidade deriva da necessidade de facilitar o manuseio da cultura pelos grupos políticos não comprometidos de forma consciente com o interesse social global, vendo-a apenas como perigo aos seus preconceitos reacionários.
Muito se tem falado sobre a taxação do livro pelo Governo Bolsonaro, que tem Paulo Guedes como Ministro da Fazenda.
Levando-se em consideração o aumento dos preços e da situação piorada de toda a cadeia econômica do livro, já consideraríamos a taxação como absurda, mas sinto falta do debate sobre as intenções por trás da ação propalada. O debate sobre a diminuição do mercado faria sentido se fosse propósito ampliá-lo. O debate sobre o baixo acesso de leitores ao livro e sua leitura faria sentido se o propósito fosse a criação de leitores. O debate sobre a imunidade e a isenção constitucionais, nesta altura da redemocratização brasileira, indica que o objetivo é deixar o livro definitivamente inacessível.
Temos que analisar o motivo que leva este Governo a tomar tal atitude para atingirmos o cerne da questão. Taxar o produto livro como forma de “salvar o caixa” de um país que se encontra à beira de uma falência, é risível, sabendo-se que as cifras geradas a partir da taxação dos livros serão inferiores, em muito, aos déficits do Estado brasileiro e à riqueza que pode ser produzida com os livros, todos os livros, circulando entre a população.
Relendo documentos meus, não publicados, e escritos em 2014 sob o título “Importância da Participação da Sociedade Civil na Construção de Políticas Públicas para o Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas”,identifico um desenho da dimensão cultural, no qual estabeleci dois recortes: o primeiro, na perspectiva da institucionalização da cultura no âmbito nacional; e o segundo, para apresentar panoramas específicos ao livro, à leitura, à literatura e às bibliotecas.
Que política cultural é esta que vulnera o que já é frágil? Parece que a fragilidade deriva da necessidade de facilitar o manuseio da cultura pelos grupos políticos não comprometidos de forma consciente com o interesse social global, vendo-a apenas como perigo aos seus preconceitos reacionários. Naquele texto, estabeleci uma cronologia da (des)construção do Ministério da Cultura: até 1985 era apenas o “C” que ornamentava o Ministério da Educação e Cultura (MEC); em 1985 é criado como Ministério da Cultura (MinC), pelo decreto nº 91.144, de 15 de março; em 1990 é transformado em Secretaria da Cultura, diretamente vinculada à Presidência da República,em pleno governo Collor; tal situação é revertida em 1992, pela Lei nº 8.490; em 2019 ele é extinto e se vê transformado, mais uma vez em uma Secretaria intitulado como Secretaria Especial da Cultura, que em um ano e meio se vê como bola de ping pong nos jogos ideológicos do novo Ministério da Cidadania, logo depois rebatida para o Ministério de Esportes e do Desenvolvimento Social e por fim alojada no Ministério do Turismo. Nesse campeonato a cultura perde, mas nos deu ferramentas para entender qual o papel da cultura para o atual governo: bola incandescente jogada de um para outro lado, visando torná-la inútil.
Feita esta introdução, passemos ao foco. Por definição o livro é multifacetado e se expressa em várias dimensões. Na Política, é instrumento essencial da civilização, disponibilizando a herança cultural de outros povos e permitindo o intercâmbio de informações entre nações. Na Cultural, manifesta a identidade histórica de um país, fomentando o desenvolvimento social integral e integrado, permitindo a conservação do patrimônio de ideias e visões de mundo, além de estimular a criação artística, como dimensão simbólica. Na Educacional, constitui banco de informações, disponível universalmente, possibilitando transmissão intergeracional de conhecimento, como instrumento democrático de formação. Na Profissional, é instrumento de formação, qualificando e requalificando todas, isso mesmo, todas as profissões. Na Tecnológica, fomenta a pesquisa científica em qualquer campo do conhecimento. Na Social, é instrumento de promoção social contribuindo para a melhoria da qualidade de vida. Na Econômica, é produto de venda para editores, distribuidores e livreiros e, hoje, dentro do novo arranjo da cadeia produtiva do livro, finalmente o escritor, isso além de gerar milhares de empregos em editoras, gráficas, distribuidoras e livrarias.
Não podemos esquecer que somos um país de uma elite iletrada, desde nossas origens. A última pesquisa do PISA, de 2018, revela que os filhos da elite brasileira compreendem menos textos do que os filhos da pobreza de outros países como China, Reino Unido, Irlanda, Finlândia, Coreia do Sul, nos situando no 42º lugar. Comparando os alunos em mesma faixa socioeconômica o Brasil ocupa a 54ª colocação. A pesquisa também revela que cerca de “50% dos brasileiros não atingiram o mínimo de proficiência leitora que todos os jovens devem adquirir até o final do ensino médio. Revela, ainda mais, que “os estudantes brasileiros estão dois anos e meio abaixo dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico-OCDE em relação ao nível de escolarização de proficiência em leitura”.
A Constituição Federal de 1946 tornou o papel destinado à impressão de livros, jornais e periódicos imune de impostos. A Constituição Federal de 1988 estendeu tal imunidade aos próprios livros, jornais e periódicos. Em 2004, as Contribuições Sociais de natureza tributária, Pis/Pasep e Cofins, foram zeradas, tornando o livro isento e não imune à cobrança destas contribuições. Pis/Pasep e Cofins são escalonados de acordo com o tamanho da empresa e a proposta do Governo Bolsonaro é que o livro saia de zero para 12%, em dose única e horizontal. A implantação desta taxa resultará em aumento do preço do livro por volta de 20% , segundo as entidades nacionais do livro. O que significará redução da aquisição e da competência para a leitura refletida e crítica, que os meios eletrônicos, embora ótimos em volume de informações e em velocidade de operação, pouco podem permitir. O arrecadado pelo governo representaria, na situação atual do mercado, sem a redução, algo em torno de R$ 700 milhões, segundo Marcos Pereira (presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros) que teve como base o cálculo referente ao faturamento das editoras e das livrarias em 2019 (mesma matéria). O déficit público que Bolsonaro e Paulo Guedes pretendem cobrir tem previsão para 2020 de aproximadamente R$ 600 bilhões. O mercado do livro em tempos de não pandemia cobriria aproximadamente 0,11% da dívida. Pergunto, a mosca salvará o elefante? Mas, a mosca é o que a cadeia do livro tem para sobreviver, além de continuar produzindo civilização, tesouro inestimável.
A política Bolsonaro/Guedes é anticivilizatória, antiintelectualista, obscurantista, reacionária, de um macabro medieval e de um oportunismo deslavado, que se associa à misoginia, à homofobia, ao racismo anti-negro, ao racismo anti-índio, ao milicianismo, à terra devastada. É por meio da leitura literária que se guarda a memória da cultura, ativando o conhecimento que desperta a potência transformadora dos cidadãos. O desejo parece ser o de ver ruir a história de um povo e, em conseqüência, vê-lo de mãos estendidas.
Nesta altura da argumentação, impõe-se revisitar dois textos que nortearam a minha vida de militância na Política de Livro e Leitura. O primeiro,“A Conturbada Histórias das Bibliotecas”(BATTLES, 2003) relata que entre 219 a 210 a.C, o Imperador Shi Huangde, da dinastia chinesa Qin, percebeu que o “monopólio sobre os recursos intelectuais é tão importante para governar um país quanto o controle sobre a produção de arroz ou de seda”. Percebendo o perigo, o Imperador mandou queimar livros juntamente com seus autores, provavelmente “estudiosos poucos propensos a submeter-se à autoridade”. O segundo, “Carta aos Livreiros do Brasil” (CAMPOS, 1960/2002) declara que “é quando o leitor põe o pé na porta de uma livraria que começam a fundirem-se todos os problemas sociais, econômicos, culturais, políticos e educacionais, que cercam a produção e a circulação do livro em nosso país”. Vê-se, no primeiro, que o temor ao livro, por parte dos autoritários, é milenar. Vê-se, no segundo, que a leitura exercita a crítica e permite integrar, no livro, as dimensões da compreensão social, com doses variadas de fantasia.
A ausência de políticas públicas positivas, sobre livro e leitura, no Brasil, teve apenas um hiato: o período de 2004 a 2015, pela construção do Plano Nacional do Livro e Leitura. Agora, o que se percebe, é o aumento inusual de falência de livrarias. Shi Huangde renasceu na dupla Bolsonaro/Guedes, que também, provavelmente sem terem memória, por sequer terem leitura adequada, a copiam a metáfora do Panis et Circensis (Pão e Circo), concebida pelo poeta romano Juvenal (circa 100 dC) que deste modo criticava a falta de informação do povo romano e de como seus líderes lidavam com a população à base de distribuição eventual de comida, adquirida pelo Governo, superfaturada, das mãos de aliados corruptos e corruptores, e à base da oferta de espetáculos nas arenas sangrentas dos coliseus, o cenário dos crimes em público que sacrificava os dissidentes.
A taxação do livro não resolve o déficit público e encarece o livro, favorecendo uma elite de leitores, em desfavor da população com menor poder aquisitivo, carente de inclusão social qualificada. O medo de uma resposta autônoma e crítica, dada pela cultura leitora, coloca em evidência a diferença entre uma política descentralizadora, em que o direito ao conhecimento e ao saber é para todos, e uma política concentradora, que concede esse direito a uma minoria que o usa como forma de poder.
- BATTLES, Matthew: tradução João Vergilio Gallerani Cuter. A Conturbada História das Bibliotecas. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
- CAMPOS, Geir. Carta aos Livreiros do Brasil. In: Bragança, Aníbal (org). A profissão do Poeta & Carta aos Livreiros do Brasil. Niterói, Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 2002.
- Portal da Agência Brasil, EBC: Disponível em: Déficit nas contas públicas deve chegar a R$ 600 bilhões este ano
- Portal do O Globo. Disponível em: Reforma de Paulo Guedes aumentará preço do livro em 20%.
- Portal da Revista Fórum. Disponível em: Pisa: Alunos da elite do Brasil compreendem menos textos do que pobres de outros países
por Mileide Flores, Diretora Vila das Artes da Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor), foi presidente do Sindilivros/CE (1999-2004), diretora adjunta da Associação Nacional de Livrarias (2009-2011), representante do Conselho Nacional de Políticas Cultural/Literatura (2012-2014)e Coordenadora de Políticas de Livro e Leitura/Secultfor (2015-2018/julho) | Texto original em português do Brasil
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