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Quarta-feira, Julho 17, 2024

A teocracia e a guerra

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

No dia 10 de Maio, a secção Iemenita dos guardas islâmicos revolucionários, destacamento criado há quase quatro décadas pela revolução islâmica iraniana, anunciou a retirada do porto de Hudaydah, em cumprimento do plano de paz aprovado pelas Nações Unidas.

  1. A guerra na península arábica

Recorde-se que a ocupação deste porto vital para o abastecimento das populações do Iémen do Norte provocou a maior crise humanitária mundial contemporânea.

Enquanto o representante das Nações Unidas saudou o gesto, as forças governamentais iemenitas esclareceram que se tratou de mais uma manobra de desinformação, dado que os guardas islâmicos se limitaram a trocar de uniformes apresentando-se a partir desse momento como ‘polícias’.

Dois dias depois, o alvo foi o pequeno emirato de Fujairah. Situado no golfo de Omã, à saída de um outro golfo que os árabes chamam árabe e os persas chamam pérsico, ele é estrategicamente significativo por ser o porto de saída dos Emiratos Árabes Unidos para o Índico que não passa pelo estreito de Ormuz.

O ataque visou quatro petroleiros, um dos emiratos, dois sauditas e um norueguês, sendo realizado por explosivos acima da linha de água. A base naval mais próxima dos guardas islâmicos situa-se a 127 milhas náuticas do local, em Bandar e-Jask, o que mostra uma capacidade razoável de sabotagem à distância.

Dois dias depois ainda, o alvo foi um oleoduto saudita que encaminha o petróleo para o Mar Vermelho como forma de contornar o estreito de Ormuz, o que provocou o seu encerramento.

Os ataques – sem vítimas, sem marés negras, sem naufrágios – parecem ter sido cuidadosamente calibrados para evitar nesta altura um efeito drástico na opinião pública.

  1. A guerra da desinformação

Diz-se frequentemente que a primeira vítima da guerra é a verdade, mas a verdade é que a desinformação é o primeiro instrumento da guerra, e ela foi mais uma vez confirmada nos ataques iranianos desencadeados contra as principais infraestruturas internacionais de abastecimento petrolífero situadas na península arábica.

As agências noticiosas iranianas foram as primeiras a difundir a notícia do primeiro ataque, entremeando juras de inocência com ameaças veladas, enquanto atribuíram o segundo à secção iemenita do IRGC.

O ataque tinha sido pré-anunciado no mais importante porta-voz do líder espiritual iraniano, o jornal Kayhan explicando que o ataque do Irão à infraestrutura petrolífera dos países da península arábica era o método adequado para os obrigar a render-se às exigências de Teerão.

O director da principal agência informativa do IRGC, a Tasmin, reivindicou o ataque para a ‘resistência’ nome que normalmente é atribuído às delegações estrangeiras dos Guardas Islâmicos ou das organizações que actuam em coordenação com eles (Hamas, Jihad Islâmica por exemplo), enquanto outros dirigentes iranianos diziam não haver provas de que o ataque tinha sido decidido por Teerão.

A multiplicação de informação contraditória é típica das potências agressoras. Lembremos que Hitler quando desencadeou a segunda guerra mundial não deixou de ensaiar uma mascarada em que as suas tropas uniformizadas como polacas apareciam a atacar os postos fronteiriços alemães.

Mais recentemente, como nos recorda o relatório nacional americano do 11 de Setembro, o New York Times, (NYT) anos depois de Bin Laden ter começado a sua guerra contra os EUA, em Abril de 1999, titulava que não havia provas de que fosse ele o responsável, e continua a fazer hoje a mesma coisa, dizendo que não há provas de que seja o regime iraniano o responsável pelos ataques.

Mais importante do que isso, e agindo em clara consonância com os interesses estratégicos de Teerão, o NYT acompanhou a desculpabilização de Teerão com a surrealista acusação de que a administração americana estava a preparar o envio de 120.000 soldados para a frente de combate, na repetição do que foi a desastrosa guerra do Iraque acusação para a qual chegou a citação de fontes não identificadas.

No rescaldo deste primeiro embate, há que reconhecer que a teocracia marcou pontos. Com custos mínimos pôs fora de jogo quatro petroleiros e o principal oleoduto saudita. Mais, fez com que o Ocidente se inclinasse a ceder à sua vontade do que lhe fazer frente.

  1. Como conter a agressão iraniana

Os guardas revolucionários islâmicos de Teerão têm neste momento uma posição de poder determinante no Líbano, Iraque, Palestina, Síria e Iémen, tendo destacamentos importantes no Afeganistão e no Paquistão, na Nigéria e noutros países da África Ocidental bem como na Venezuela.

No plano nuclear, o Irão está muito avançado em matéria de mísseis e de construção dos dispositivos de explosão, tendo agora anunciado a sua vontade de não cumprir com as obrigações assumidas em matéria de congelamento por alguns anos de produção de urânio enriquecido.

No plano da influência política, o Irão conta com as alianças táticas da China e da Rússia que parecem ver em Teerão uma forma barata e prática de combater os EUA, e conta com uma apreciável influência na opinião pública ocidental que procura o apaziguamento com o regime teocrático.

O regime conta contudo com três enormes fragilidades, a primeira é a do profundo descontentamento popular com o regime, que só se sustenta com o uso de mecanismos de repressão; a segunda é a ineficiência de um sistema económico que está nas mãos dos guardas islâmicos ou fundações religiosas controladas pelo clero e a terceira é ter pela frente uma administração americana que parece crer romper com a lógica suicidária das administrações que a antecederam.

Qualquer estratégia vitoriosa para enfrentar a agressão revolucionária islâmica de Teerão precisa de saber encadear os vários tabuleiros onde a guerra se desenvolve, sendo que os dois mais importantes neste momento são os do descontentamento popular com o regime fanático e a guerra da desinformação.

Não basta, nem é sequer mesmo essencial, qualquer porta-aviões. O que é essencial é entender o que fazer nos vários tabuleiros da guerra que a teocracia desencadeou contra o humanismo e a liberdade.


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