Uma mera entrevista, concedida por um dos chefes indígenas da tribo dos Choctaw, permitiu que um repórter do jornal “Arkansas Gazette” registrasse uma expressão que viria a entrar – de modo nada honroso – para a história dos Estados Unidos.
Ao ser questionado sobre o processo de remoção de seus pares para a região de Little Rock, em conformidade à política imposta pelo governo norte-americano em 1830, o “pele vermelha” (de nome incerto) respondeu que o deslocamento havia sido uma “trilha de lágrimas e morte”.
É sabido que o processo de expansão territorial dos Estados Unidos, especialmente o período correspondente à conquista do Oeste, no século 19, foi marcado pela grande violência sofrida por populações indígenas que habitavam as regiões cobiçadas pelos brancos. Nesse contexto, a trilha a que o chefe Choctaw se referiu foi apenas um dos atos de extrema crueldade impingidos pelo governo federal, em nome da “democracia” desejada por aqueles que se consideravam superiores e com autoridade para cometer tais atrocidades.
Movido por essa causa, coube ao governo federal criar o artifício legal para que a permanência de tribos indígenas em locais estratégicos fosse passível de algum tipo de transferência. Assim, em 1830 o presidente Andrew Jackson foi o responsável por promulgar a chamada “Lei de Remoção dos Índios”, meio pelo qual se estabelecia a criação de uma grande reserva indígena na região que hoje corresponde ao estado de Oklahoma. Do dia para a noite, milhares de homens e mulheres, das mais diferentes idades e culturas, se viram obrigados a realizar um deslocamento de mais de 1.500 quilômetros, rumo a um futuro completamente incerto.
Entre o começo do século 18 e os primeiros anos do 20, praticamente toda a posse das terras dos Estados Unidos foi transferida dos índios para os brancos. Esse processo, ao longo da história, foi compreendido de duas formas: a primeira pressupõe que essa mudança se deu a partir de transações consensuais; a outra atribui o trâmite a uma conquista violenta.
Entre 1828 e 1838, mais de 80 mil indígenas foram removidos do Leste para o Oeste. Segundo Banner, a palavra “remoção”, em inglês, não consegue traduzir, nos dias atuais, seu significado de quase 200 anos atrás – em português isso também ocorre. Hoje ela soa mal, como se fosse parte de um processo de “mudança não voluntária”, mas naqueles idos seu uso era associado a processos mais amenos. A denominação da lei de Jackson foi cuidadosamente batizada para que seu real significado não viesse à tona. Coube ao tempo demonstrar que o nome era perfeito, para a desgraça das tribos indígenas.
Um homem do povo
Até 1819, os Estados Unidos viveram uma fase de grande desenvolvimento e pujança. No entanto, naquele ano o preço do algodão caiu vertiginosamente no mercado internacional. Como consequência, uma grave crise econômica atingiu em cheio a nação, criando em poucos meses um clima de tensão social e fazendo com que ressurgissem em maior proporção velhos entraves regionais, especialmente entre o Norte e o Sul do país.
Essa mesma fase é marcada pela intensificação do processo de colonização dos territórios conquistados no Oeste. Algumas dessas grandes áreas se transformaram em estados, tornando-se motivo de disputa entre políticos do Sul (escravistas) e do Norte (não escravistas).
Nesse cenário de crise econômica, expansão para o Oeste e desentendimento entre forças políticas do Norte e do Sul, os Estados Unidos viram surgir certos efeitos delicados a partir da tensão social. A classe política foi em grande parte responsabilizada pela crise e pelos desentendimentos, permitindo que novas lideranças emergissem. Entre elas, a de Andrew Jackson.
Ainda criança, com menos de 12 anos, Andrew Jackson participou de batalhas da Revolução Americana, quando viu dois de seus irmãos morrerem – fato que instilou no futuro presidente, pelo resto de sua vida, um sentimento de desconfiança em relação aos ingleses. Adulto, tornou-se advogado, plantador e comerciante de regiões fronteiriças, mas ficou conhecido nacionalmente em 1815, quando foi figura de destaque na Batalha de New Orleans.
Alguns admiradores consideravam Jackson o maior soldado vivo em todo o país em meados da década de 1820. Era um homem de fala simples e identificado com a população mais humilde. Alguns o definiam como alguém carismático e combativo. O presidente John Quincy Adams (seu antecessor e adversário político), por sua vez, qualificou Jackson como “um bárbaro incapaz de escrever uma sentença gramatical e tampouco soletrar o próprio nome”.
Em sua trajetória política, Jackson conquistou o apoio de eleitores de regiões agrárias dos Estados Unidos, pioneiros, fazendeiros, pequenos plantadores e lojistas do interior. Nos discursos, sempre criticava o status quo da política norte-americana, no qual os louros da vida pública estiveram sempre reservados para os ricos, os bem-nascidos e os cultos. O povo via em Jackson alguém semelhante – e concedeu ao “Old Hickory” uma vertiginosa e brilhante carreira política.
Depois de se tornar governador militar e senador, Jackson virou o sétimo presidente norte-americano. Sua posse foi considerada por muitos como uma nova era na Casa Branca. Apesar de ser um homem de posses, dono de escravos, fazendas e considerável fortuna, sua imagem continuou associada à de um cidadão simples, alguém preparado pelo Exército, pela vida e pelo contato direto junto à população.
A resistência
A questão da remoção de tribos indígenas originárias no Oeste do país foi um tema bastante presente na campanha presidencial de 1828. Ao ser eleito, Jackson pôde colocar em prática suas propostas de ocupar rapidamente novas áreas. Em teoria, sua tática para conseguir levar a cabo sua política seria o diálogo com os índios, mas desde o princípio havia sinais de que ele não hesitaria em fazer uso da força militar para alcançar os objetivos de grande parte dos grupos que formavam sua base eleitoral.
Em 1830, as tribos Cherokee, Chickasaw, Choctaw, Creek e Seminole, que viriam a ser chamadas no futuro de “As Cinco Nações Civilizadas”, viviam com autonomia política e, dentro de suas características, aos poucos procuravam se integrar aos novos tempos em suas terras. A ideia de remover essas tribos para outras regiões do país não era nova – Thomas Jefferson chegou a mencioná-la, décadas antes – e Jackson tratou de oferecer a cada membro das cinco tribos um lote do Território Indígena para onde seus povos seriam deslocados. Tal qual um Godfather de tempos remotos, o presidente fez “uma proposta que não podia ser recusada”.
Contudo, a princípio a proposta do governo federal não foi bem recebida pelas tribos. Em 1831, os Choctaw inauguraram a série de mudanças rumo às reservas determinadas pelos homens brancos. Um ano depois, foi a vez dos Seminole. Os Creeks (1834), os Chickasaw (1837) e os Cherokee (1838) acabariam por seguir seus pares, mas não sem antes resistirem ou negociarem condições mais favoráveis. Não por acaso: esses povos se viram obrigados a deixar regiões úmidas e arborizadas em que estavam instalados para se adaptar às planícies secas e abertas da região que hoje faz parte do estado de Oklahoma.
Entre as tribos que resistiram à remoção, destacam-se os Seminole e os Cherokee – estes pelo fato de suas terras serem consideradas, à época, muito mais valorizadas do que as de seus pares. Além disso, os Cherokee já se mostravam muito mais inseridos na sociedade norte-americana do que as outras tribos, muito embora tal fato não alterasse sua condição desigual perante os brancos. Cerca de dez anos antes de Jackson chegar ao poder, os Cherokee já tinham conhecimento do interesse de remoção e, diante disso, trataram de se preparar, construindo casas de madeira e se inserindo no comércio da região, por meio da plantação de produtos como algodão, abóbora, feijão e outras culturas cultiváveis.
A remoção dos Cherokee acabou ocorrendo por meio da força do Exército, mesmo com o ganho de causa concedido pela Suprema Corte aos que já habitavam as terras originalmente. Calcula-se que cerca de 4 mil indígenas (em um total de 25 mil homens, mulheres e crianças) foram assassinados durante o processo, que culminou com a aceitação da lei promulgada por Jackson. “Eu lutei nas guerras entre alguns países e atirei em muitos homens, mas a remoção Cherokee foi o trabalho mais cruel que conheci”, afirmou um dos soldados envolvidos no trabalho de “convencimento” do governo federal.
Home, sweet home?
Enquanto as tribos se viam obrigadas a transformar por completo suas vidas, os Estados Unidos acompanhavam calorosos debates sobre a política do presidente Jackson. Representantes dos indígenas conseguiram dar destaque ao ponto de vista de seus povos – e venceram o debate em muitas ocasiões, contrariando os interesses dos brancos que, inicialmente se recusavam ao uso da força para alcançar seus propósitos.
A tensão social no país e a necessidade criar estímulos à economia acabaram elevando a discussão da remoção indígena a novos patamares. Banner, com ironia, diz que, “ao lembrar o histórico de aquisição das terras indígenas na America, a decisão de usar o Exército para essa finalidade não foi nenhuma surpresa”.
Sem alternativa, coube aos indígenas iniciar a trajetória que viria a ser conhecida como “Trilha das Lágrimas” e partir em busca das terras que seriam o seu novo lar. Durante a longa e forçada marcha, as “Cinco Tribos Civilizadas” tiveram que se deparar com nevascas, escassez de alimentos e doenças desconhecidas, com a companhia nem sempre amistosa de militares e uma completa falta de estrutura. O apoio logístico e financeiro garantido pelo governo federal nunca sairia do papel.
Em menos de um século, as tribos removidas veriam suas terras serem parcialmente abertas para a colonização. No início do século 20, as Cinco Nações Civilizadas já não formavam grupos coesos em termos de organização e suas gerações seguintes abandonariam as próprias origens. A fraude entraria para a história como o principal artifício utilizado nas negociações entre o governo federal e as tribos, em nome dos ideais e da construção de uma jovem democracia.
Ao impor seu projeto de país às tribos indígenas que viriam a percorrer a “Trilha das Lágrimas”, o presidente Jackson demonstrou ignorar o conteúdo do documento que livrou os cidadãos de seu país das amarras inglesas, mesmo tendo passado apenas cinco décadas de sua publicação. “Todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”, dizia o texto em questão. Faltou à “Declaração de Independência dos Estados Unidos” esclarecer com mais precisão que nem todos os homens nascidos em território norte-americano seriam contemplados…
por Fernando Damasceno, Jornalista e historiador | Texto em português do Brasil
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