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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

A Troika existiu?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Começo a acreditar que se quisermos descrever o que, em termos tanto políticos como económicos, se tem passado em Portugal nas últimas décadas, baseando-nos na recolha de memórias, nos encontraremos perante um esforço descomunal. E todavia dispomos de imensa documentação que foi sendo produzida dentro e fora da Administração Pública, pelo poder e pelas oposições, e de abundante material estatístico, incluindo séries longas.

Não sendo eleitor do Partido Socialista, julgo contudo imperativo dizer que vejo sempre com perplexidade referências às alegadas bancarrotas da responsabilidade daquele Partido em 1977 e em 1983.

No primeiro daqueles anos o problema era de disponibilidade de divisas, cujo nível se reduzira assinalavelmente nos três anos precedentes, em que a população passou, como se sabe, a viver melhor… O Acordo com o FMI deu origem à aprovação de “pacotes” de medidas de política em Fevereiro e em Agosto de 1977. O Governo minoritário do Partido Socialista colocou uma moção de confiança que foi recusada. O primeiro ministro Mário Soares formou em 1978 um segundo governo minoritário em que integrou ministros do CDS “despartidarizados para o efeito” e na Agricultura substituiu António Barreto por Luís Saias(i). Foi sol de pouca dura, e seguiram-se três “governos de iniciativa presidencial”(ii) liderados respectivamente por Alfredo Nobre da Costa, Carlos Mota Pinto e Maria de Lurdes Pintassilgo. Em 1979 Francisco Sá Carneiro forma Governo depois da vitória eleitoral da recém constituída Aliança Democrática, vitória essa renovada em 1980.

Depois da morte de Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão forma mais dois Governos da Aliança Democrática mas em 1983, na sequência de dificuldades políticas internas e de problemas orçamentais(iii) e de balança de pagamentos são convocadas eleições, ganhas por Mário Soares que forma coligação com um PSD já liderado por Mota Pinto, conhecida por Bloco Central, e aí faz-se um Acordo mais complexo com o FMI, que inclui medidas financeiras e fiscais, e com o qual se convenciona que, para efeitos de acompanhamento do Acordo se tomará em conta um Sector Público Alargado que incluirá 53 entidades, entre as quais o Gabinete da Área de Sines. Não há aqui uma bancarrota nas contas públicas, que seria de imputar à AD, mas sim um problema de défice externo. A certa altura Mota Pinto é substituído por Rui Machete enquanto primeiro-ministro e enquanto presidente da comissão política do PSD e apesar das reservas de Cavaco Silva que entretanto vencera, contra João Salgueiro, o Congresso do PSD na Figueira da Foz, são assinados em 1985 os Acordos de Adesão às Comunidades Europeias.

No final do ciclo de Cavaco Silva o nosso país já estava lançado para ir mais longe, com a adesão à futura moeda única, estando já excluído o financiamento do défice através do Banco de Portugal. Quando o Euro foi efectivamente criado, e Portugal, decorria o ciclo de António Guterres, ficou integrado no Euro, parecia que os problemas de balança de pagamentos iriam ficar para trás e não voltaria a haver recurso ao Fundo Monetário Internacional. João Ferreira do Amaral, profundo conhecedor da economia portuguesa, foi alertando para a perda de instrumentos de política monetária, designadamente a possibilidade de desvalorização da moeda….

A ruptura, com novo pedido de apoio externo, veio a ocorrer em 2011. E todavia tanto nos ciclos de Durão Barroso(iv) como de José Sócrates se haviam adoptado medidas ditas de reforma ou modernização do Estado que eram essencialmente dirigidas contra o emprego público e as garantias dos funcionários, incluindo no domínio da formação de pensões, e até, em 2010, de cortes nas suas remunerações nominais. Que sucedera? Uma consequência da crise internacional, veio a dizer-se nos meios do Partido Socialista, com uma subida crescente nas taxas de juro suportadas pela República na contratação de novos empréstimos? Efeitos de acatamento bem intencionado de orientações europeias no sentido de subir as despesas públicas, segundo se disse nos mesmos meios? Ou simplesmente uma indicação do Banco Central Europeu aos bancos portugueses de que deixaria de os apoiar se continuassem a dar crédito ao Estado português? No início do ciclo de José Sócrates o Ministro das Finanças, Luís Campos e Cunha, afastara-se por discordar do anúncio de uma política conducente ao lançamento de grandes projectos. Tive ocasião de ouvir em 2009 no Congresso organizado pela Ordem dos Economistas no Funchal uma intervenção sua, como orador de referência, sobre os problemas da dívida(v). Quando Teixeira dos Santos, seu sucessor, fez apelo à ajuda externa, logo se disse que o Estado não iria ter dinheiro para pagar aos funcionários e aos pensionistas, portanto seria uma bancarrota. Ninguém parece ter perguntado se haveria um plano B. Enfim, na Grécia disse-se pior, que deixaria de se poder levantar dinheiro das caixas multibanco porque o país seria expulso do euro…

A constituição das chamadas troikas – FMI, Comissão Europeia, Banco Central Europeu – nos países do Euro levantou problemas originais:

  • a própria coordenação destas três entidades, embora a participação do FMI fosse vista como útil, porque por um lado traria um apport substancial ao financiamento dos empréstimos a conceder, depois porque teria já “receitas” experimentadas noutros locais, e, finalmente, ficaria com o odioso das “maldades”(vi);
  • a impossibilidade de utilizar a desvalorização da moeda como instrumento de restabelecimento da competitividade externa, obrigando a utilizar medidas sem anestesia, e tivemos uma boa experiência com a tentativa de alteração radical da repartição da Taxa Social Única (TSU) entre patrões e e empregados, que levou ás mega manifestações de 15 de Setembro de 2012.

Tenho numerosos apontamentos desse período e do imediatamente anterior no meu blogue pessoal mas para o que vou escrever a seguir, socorrer-me-ei:

  • de um relatório meu sobre a comunicação de Pedro Lains, infelizmente já desaparecido, intitulada “The rise and demise of the Troika virtues”, apresentada no Instituto de Ciências Sociais, em 12 de Fevereiro de 2013;
ulisboa.pt
  • de um artigo de Helena Rato, intitulado “A Administração Pública e a Política de Austeridade em Portugal”, publicado no nº 1 da RAEP – Revista de Administração e Emprego Público em Fevereiro de 2015, sendo esse número de lançamento da Revista dedicado ao tema “Austeridade e Reforma da Administração Pública”.

Da comunicação de Pedro Lains retenho a percepção de que as posições da Troika para a legislação laboral terão sido construídas por personalidades portuguesas. As alterações relativas a horários de trabalho, bancos de horas, contratação colectiva, terão essa marca. Possivelmente terão favorecido a competitividade externa e a facilidade em cumprir encomendas captadas. Talvez se lhe possa também creditar a dificuldade de repor salários face ao processo inflacionista que viemos a ter recentemente e a falta de referências salariais para a contratação de pessoal com habilitações literárias superiores a quem o mercado não valoriza, oferecendo-lhe o salário mínimo. As subidas de salário mínimo que os governos de António Costa foram aprovando terão beneficiado também algumas vítimas desta anomia. Mas o problema da subida dos salários médios é mais complexo. As “conquistas do patronato” no período da troika devem também ser creditadas a João Proença, secretário-geral da UGT, um quadro bem preparado, mas homem do sindicalismo da função pública.

Do artigo de Helena Rato, que situa a actuação do FMI no contexto do “Consenso de Washington” alcançado em 1989, retiro dois aspectos espantosos do processo de intervenção: a troika, e em particular o FMI teriam informação deficiente sobre os efectivos da função pública e não dispunham de informação actualizada sobre a legislação vigente, designadamente sobre a avaliação de desempenho na função pública, introduzida em 2004, e até sobre o regime de vínculos, carreiras e remunerações, aprovado em 2008. O que é que terá lido? As Actas do Compromisso Portugal que reduziam 100 ou 200 mil funcionários públicos de uma assentada? Helena Rato, que analisou detalhadamente um relatório de assistência técnica do FMI produzido em Janeiro de 2013 e intitulado Portugal Rethinking the State – Selected Expenditures, Reform Options, observa, com inteira pertinência:

Um deficiente diagnóstico prejudica todo o processo de tomada de decisões na resolução dos problemas, desde a definição de objectivos e metas até à identificação de medidas adequadas para atingi-los. Esta dificuldade está presente no relatório do FMI, sobretudo na reflexão à volta das medidas a tomar para se atingir a redução do emprego e da despesa pública com as remunerações pagas aos trabalhadores.

Pareceu-me na altura que seria simples aproveitar a legislação já produzida no ciclo de José Sócrates sobre pré-reformas e desvinculações com indemnização para suscitar logo em 2012 – com ajustamentos de forma a bonificar os valores de indemnização por exemplo tomando as remunerações antes de cortes ou reduzindo o período de impedimento de regresso à função pública – um movimento de integração de trabalhadores da função pública na actividade privada. Tais ajustamentos poderiam por exemplo ser introduzidos pelos grupos parlamentares da maioria na votação na especialidade da Lei do Orçamento do Estado para 2012.

No entanto para reformar é preciso conhecer o que se vai reformar e saber gerir:

  • o “troico” Passos Coelho tinha pouca experiência de trabalho fora da política, e nenhuma no Governo e na Administração Pública;
  • o “troico” Paulo Portas fez um power point sobre Reforma do Estado;
  • o “troico” Carlos Moedas, engenheiro civil, ficou a liderar uma estrutura de missão, a ESAME, que construiu 400 e tal leis, propostas de lei e decretos-leis.

De forma que, em vez de fazerem o que não feito, refizeram o que já estava feito, e ao PRACE juntaram o PREMAC. Para as desvinculações negociadas criaram uma Portaria, lançada quando a economia já estava estrangulada e tinha pouca capacidade de absorção de gente a sair da função pública e, como se percebe, teve pouco sucesso.

Agora andam por aí a prometer aumentos e recuperações de tempo de serviço…

Jose Silva Peneda (apdh.pt)

O FMI teve a ver com isto? Silva Peneda na altura Presidente do Conselho Económico e Social, inseriu em 2 de Março no Público um artigo intitulado “A Reposição da Verdade”, em que revela ter-se apercebido de que quem mandava na Troika era o FMI e, tendo sempre manifestado as suas preocupações, ter tido, por intermédio de Carlos Moedas, uma reunião com o Senhor Thompson, chefe da missão do FMI, a pedido deste último. Peneda sempre foi um moderado.

Se repararmos bem, Vítor Gaspar, Ministro das Finanças, foi mais radical: assumiu que iria promover UM ENORME AUMENTO DE IMPOSTOS, demitiu-se a meio da função, o que Ernâni Lopes não fez no tempo do Bloco Central, formulou umas observações sobre a inadequação dos multiplicadores utilizados no modelo utilizado pelo FMI, o que significa, julgo, que as medidas adoptadas acabaram por ser vistas por ele como excessivas. Foi trabalhar para o dito FMI e pelo menos ele não ameaça voltar para promover uma redução de impostos.

Vítor Gaspar

Por mim, mantenho a visão que publiquei no meu blogue pessoal em 2 de Outubro de 2015 em relação ao grupo de “troicos” nacionais:

Do ponto de vista interno não ensaiou um verdadeiro esforço para reduzir a dívida e desperdiçou oportunidades de rendibilizar a alienação de activos do Estado, isto quando não sucedeu pior.

Enumerando:

  • falta reforçar a centralização do recurso ao crédito público;
  • as verbas de pessoal cortadas nas empresas públicas e nas autarquias locais não foram entregues ao Estado para redução da dívida pública;
  • não foi exigida à PT e outras entidades qualquer contrapartida pela extinção das Golden Shares; o que suscitou na altura um veemente protesto de Luís Campos e Cunha;
  • não foram extintas e reintegradas no Estado as entidades – Estamo e Parque Escolar – para as quais foram transferidos activos do Estado afectos ao funcionamento dos serviços;
  • as famosas fundações continuaram, no essencial, a existirem e a ser apoiadas;
  • perderam-se oportunidades de resgate de parcerias público – privadas e criaram-se outras;
  • a privatização da EDP e mais recentemente a venda da Finangeste podem ser vistas como casos de polícia;
  • a privatização dos CTT baseou-se numa avaliação deliberadamente baixa como se o objectivo fosse dinamizar o mercado de capitais, como em 1990, e não obter receita;
  • não se tomou qualquer medida para sanear financeiramente as empresas de transportes urbanos, cuja exploração foi concessionada;
  • a subconcessão do Metro de Lisboa e Carris foi feita em condições desfavoráveis para o Estado”.

As duas últimas decisões de concessão foram revertidas pelo governo seguinte. Não incluí aqui expressamente o caso da concessão da ANA, cujos contornos só agora foram conhecidos totalmente em toda a sua extensão, e da venda da TAP.

Pior – e volto a lembrar que sou nacionalista quanto baste – foi esta gente se ter encostado aos poderes europeus e se ter deixado arregimentar na frente contra a Grécia.

 

Notas

(i) António Barreto visto como sendo inimigo da Reforma Agrária. Integraria as listas da AD como candidato do Movimento Reformador.

(ii) Sendo Presidente da República Ramalho Eanes.

(iii) Assinalados por Juan Mozzicafreddo.

(iv) Com Santana Lopes no seu efémero Governo, a propor um abrandamento do ritmo.

(v) Como orador interveio também Fernando Nobre, que haveria de concorrer a Presidente da Republica e a deputado por lista de Passos Coelho, renunciando ao mandato quando este não conseguiu fazê-lo eleger presidente do Parlamento.

(vi) Na conferência de Pedro Lains a que aludo a seguir este investigador afirmou que foi a Alemanha a sugerir o convite ao FMI.

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